houve aplausos, mais até para os políticos do que para os artistas

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Sábado, 24 de Setembro

Passeio-me por Óbidos, ao final de mais um salto ao Folio. A enxaqueca voltou, não sei se da desidratação, do sol ou do simples cansaço, mas celebro cada encontro, com colegas ou com amigos, agendados ou por acaso - a Anabela e o Couto Nogueira, todo o clã de Vila Franca, a Vera e o seu Ricardo e os outros todos.

Há algo nas minhas passagens pelo continente que tornam as chegadas menos doces do que as partidas, como se diz naquela canção coimbrã. Chego e sou logo assoberbado de queixas: os jornais que estão a morrer, a intelligentsia literária que é cada vez mais injusta, os casos na ordem do dia que demonstram a inutilidade da espécie, a inviabilidade do país, o próprio absurdo da nossa presença no sítio onde nos encontramos.

E se me refugio no hotel a trabalhar, às vezes, é pior. Porque há barulho, porque o quarto está a limpar exactamente naquele instante, porque, seja o hotel grande, médio ou pequeno, barato, caro ou caríssimo, a internet nunca funciona em condições, o que me impede sempre de despachar, com um mínimo de conforto, as tarefas mais burocráticas.

Já à partida, tudo é doce.

Ao fim de quatro anos e meio, cheguei a um ponto em que deixei de saber se faço ou quero fazer parte, se me consideram como fazendo parte ou querem considerar, se sou apenas o tipo que está na ilha ou o tipo que é da ilha e se encontra agora de visita.

Sei isto: ao chegar a Lisboa, anteontem, tive de ensinar ao motorista que me foi receber ao aeroporto o caminho até à A8 e depois de lhe explicar como funcionavam as portagens sem recurso à Via Verde. E também sei isto: amanhã à noite, quando pousar as malas no chão da cozinha da Terra Chã, e trocar um beijo com a Catarina, e me agachar para dar uma festa aos cães, e sair a fumar um cigarro e a sentir a noite de Setembro, repleta de cheiros e temperaturas, os casos na ordem do dia voltarão todos a ser um ruído de fundo, tão indiferentes à marcha dos tempos como esta a eles.

Tenho cada vez mais dificuldades em saber o que represento e que espaço ocupo, se é que represento ou ocupo. Mas não em saber ao que pertenço: pertenço a isto. Pertenço a isto e agora já acho que nunca aprendi nada na vida até aprendê-lo.

Quarta-feira, 28 de Setembro

Leio no Diário Insular sobre a visita do primeiro-ministro chinês à ilha e sobre como o povo terceirense se reuniu em massa, na Praça Velha de Angra, para assistir com ele a um concerto. Houve aplausos, mais até para os políticos do que para os artistas, e as bandeiras de Portugal e dos Açores não foram hasteadas na Câmara.

A visita veio descrita como uma escala técnica, mas tanta escala técnica chinesa desde há quatro anos a esta parte - do primeiro-ministro, do Presidente da República, do ministro do Mar - começa a parecer escala técnica a mais. Sobretudo quando já se vão juntando às visitas figuras do Estado português, para reuniões mais curtas ou mais compridas, e em que tanto se debatem candidaturas a cargos internacionais como a história de boas relações entre os dois povos, com zénite na devolução de Macau.

Se não pudessem ser reconhecidas como mais nada, as gentes desta ilha continuariam a ser reconhecidas como hospitaleiras e curiosas. Qualquer visitante merece uma salva de palmas e qualquer visitante de um país ao mesmo tempo poderoso e exótico geraria sempre a curiosidade dos locais. Mas o que está aqui em causa é principalmente o esforço de mostrar à China que seria muito bem recebida cá, se quisesse ocupar o espaço deixado vago pela progressiva debandada americana da Base das Lajes.

Tenho de perceber estas pessoas. Os americanos estiveram aqui 70 anos. Primeiro geraram emprego directo, depois começaram a ir-se embora e permitiram o nascimento de indústrias-satélite que sustentaram milhares de pessoas e boa parte da economia da ilha. Há demasiadas bocas para alimentar, adultos, crianças e idosos, e o fim parece agora à vista. Mais do que hospitalidade, o que há naqueles aplausos é desespero.

E eu, independente da geopolítica e dos ciclos de projecção de poder, não consigo perdoar aos americanos, que sempre admirei - pela cultura popular e pela cultura erudita, pela meritocracia, pela possibilidade - e durante tantos anos defendi dos ataques da ignorância suburbana europeia, terem empurrado o meu povo para uma situação em que se sente obrigado a receber com aplausos, vénias e até súplicas os líderes de um país onde a iniciativa individual, a liberdade de expressão e os direitos humanos são tratados como na China.

A ver agora as eleições para a Casa Branca. Começa a estar em causa uma longa história de amor.

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