Até que, de repente, a tela se encheu da testa alta de Elias

Lugar dos Dois Caminhos, 6 de Novembro

Ontem enterrou-se o Ti Elias. Devo-lhe a minha melhor personagem, se é que lhe posso chamar minha. Pertencia-lhe quase toda.

Elias Diogo não era apenas o homem mais velho da Terra Chã: era uma lenda. Todos os dias percorria o Caminho D"Além, muito alto e silencioso. Há anos que não dirigia a quase ninguém mais de duas palavras seguidas, e o hábito de tirar o boné ao passar por uma senhora, fosse qual fosse a sua idade ou condição social, só lhe acentuava as contradições do carácter.

Nos anos 90 apareceu no Adeus, Pai, aquele filme do Luís Filipe Rocha em que um adolescente de Lisboa vinha aos Açores à procura do progenitor. Eu vivia em Lisboa há quatro anos e ainda não sabia as saudades que sentia da ilha. Ia ao cinema nas Amoreiras, com a namorada trazida da faculdade, dinheiro na carteira e tempo livre que chegasse. Sentia-me no topo do mundo. Até que a tela se encheu da testa alta de Elias - a testa alta das estrelas de cinema - e do seu olhar marejado de quem já bebera muito. Nunca mais deixei de ter saudades da ilha e, quando voltei, dezasseis anos depois, a silhueta dele foi uma das primeiras coisas a fazerem-me sentir em casa.

Agora estou por minha conta. Já quase não restam velhos da minha infância. Chegou a hora de perceber se soube de facto cultivar a memória ou me limitei a acumulá-la.

Lugar dos Dois Caminhos, 12 de Novembro

O pior do campo é a figura do chato da aldeia. Quer dizer: talvez não seja mesmo o pior do campo. Mas, por outro lado, é.

O chato da aldeia não é tão chato como o piadético da cidade. Para o piadético da cidade, qualquer coisa serve de ensejo a um trocadilho, normalmente destinado ao engrandecimento do seu próprio sentido de humor (ele diria inteligência, palavra de que se sente mais próximo). O piadético sabe os provérbios todos, o que já o desaconselha bastante, e às vezes até nos calha ter de aturá-lo na consoada. É difícil de aguentar o piadético da cidade, com os seus chauvinismos e moralismos e racismos e chico-espertismos em geral.

Ao pé do piadético da cidade, o chato da aldeia é inofensivo. Mas em certos dias, como em certas horas do dia, não dá jeito nenhum encontrar o chato da aldeia. Como de manhã, quando uma pessoa vai ao café ainda a dormir e não lhe ocorre o que responder a um teste sobre o estado do tempo para o dia seguinte (ainda mais aqui) ou sobre as tangerinas estarem mais miúdas este ano. Como ao sábado, quando tudo o que uma pessoa quer é esparramar-se no sofá, a contar os pêlos à Lassie, e não lhe ocorre melhor explicação sobre porque é que não vai ao jantar do Império, ou à festa da paróquia, ou ao concerto da filarmónica a não ser essa: tenho de contar os pêlos à Lassie.

O chato da aldeia indigna-se imenso porque está sempre ansioso por conversar, flagelo sobre os demais devastador. Na maior parte das vezes, nem sabe sobre o quê. Ainda ontem apanhei o meu chato da aldeia de estimação. Ainda não eram nove horas e eu enchia sonambulamente um saco plástico com laranjas, sem verificar sequer se estavam bem. Vi o chato da aldeia serpentear entre os cestos, a fingir-se distraído, e gelei. Vi os seus olhos à procura de um assunto. Até que se fixaram nas castanhas.

- Olha, castanhas - disse. Tentou pensar depressa. - Este ano ainda não comi uma que fosse...

E, enquanto o dizia, os seus pés iam-se movendo, ligeiros, para a frente, para trás e até de lado, como aqueles robôzinhos dos filmes do George Lucas. Até que o deixaram em posição para uma boa converseta sobre a quantidade de castanhas que cada um comeu este ano, o mal que aquilo faz aos intestinos, o problema com que ele anda na barriga, a falta de atenção que os filhos, agora que estão casados, dão às suas maleitas, às maleitas da mãe e, já agora, aos pobres pais em geral.

- Olha, que chatice - improvisei. E peguei numa anona: - Mas corações-de-negro ainda vais a tempo, que só agora estão a começar.

E ele:

- Pronto, já percebi que não queres conversar.

E depois, fingindo falar com os seus botões:

- Sempre cheio de trabalho, sempre cheio de trabalho... Nunca tem tempo para conversar um bocadinho, poça amigo!

Nisso, o chato da aldeia não é diferente do piadético da cidade: quer atenção. Como o piadético da cidade, diz coisas como "O trabalho não é tudo na vida", entre outras máximas irrefutáveis, e frequentemente remata com aquele mesmo "Não é?" que, ao contrário do que acontece com os demais arquétipos sociais, não configura retórica: espera mesmo que a pessoa responda, a ver se aparece assunto melhor. Mas, ao contrário do piadético da cidade, o chato da aldeia ainda não chegou à sofisticação de disfarçar que o que quer é atenção, e isso também abona em seu favor.

À conta do chato da aldeia e do medo que tenho de me ver encurralado por ele no canto de alguma mercearia, já ganhei fama de tipo que só fala de trabalho. Imagino o chato da aldeia a conversar com a mulher em casa, fazendo voz de boneco:

- Muito trabalho, muito trabalho... Credo. Parece o Octávio Machado!

Tem razão, nisso tem. Mas a verdade é que nunca encontrei melhor antídoto para o chato da aldeia. O chato da aldeia não gosta de conversar sobre trabalho. Se não gostasse de conversar sobre futebol, eu ia ver o Benfica.

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