Vidas separadas

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Fizemos nestes anos todos vidas separadas, as coisas corriam bem. Ontem ia no carro, no bairro do Rego, e era ela, de óculos escuros e chapéu, a entrar para um restaurante. Antes de ontem também era ela, com os mesmos óculos escuros e o mesmo chapéu, à porta de uma galeria de arte, em São Bento. Tenho a certeza de que era ela. Já são vários os avistamentos da Madonna, e não há um único dia em que não pense nela desde que se mudou para cá, a sua silhueta em cada esquina.

A nossa relação é uma relação que não é de hoje, mas de ontem. Tão longe tão perto, agora tão perto tão longe. A nossa relação, ou melhor, a minha relação com ela, vem de longe, de quando eu ouvia as suas músicas e tentava perceber as letras, de quando as fotografias dela eram a capa de um disco, o folheto de uma cassete, um poster da revista Bravo, que também tinha uns autocolantes muito cobiçados, mas o melhor eram os posters até a fita ficar sem cola, depois mais eternos com o bluetack, que deixava uma chaga azulada para sempre na parede. Não havia esta coisa de termos sempre tudo o que queremos no bolso. Mas as coisas cá chegavam. E um dia chegou um número da Playboy com a Madonna nua lá dentro. Não posso aqui dizer como chegou, mas chegou, com os olhos do Friedlander na pele dela, os melhores olhos na melhor pele, sensual e tímida, mulher e objeto, natural e feita, sem filtros. Olhos no olhar, olhar nos olhos, um ar de que ainda hão de ouvir falar de mim, e a tristeza de quem vê o que isso vai exigir.

Eu bem soube das dificuldades, não contadas diretamente por ela, que nunca foi de me falar disso, talvez para não me preocupar, mas pela biografia não autorizada que li no início dos anos noventa, bem me custou que eram centenas de páginas em inglês, mas eu tinha de saber o todo o passado nos baixos de Nova Iorque. Os abusos, os equívocos, a violação no terraço do prédio, num ano em que eu nascia deste lado do Atlântico, as discotecas, o girl power como necessidade, mulheres com tomates, no caso webos (esta é só para madonófilos).

Nunca exigi muito da Madonna, ela tinha a vida dela, eu tinha a minha. Ela tinha a carreira dela, eu passei a ter a minha. O problema não era tanto a diferença de idade, nem de língua, nem de cultura. E nunca me importei dos homens que foi tendo, a maior parte deles uns parvalhões, mas isso parece atributo das mulheres interessantes à minha volta, uma atração por tipos com arestas. Não que ela seja fácil, que não é. A verdade é que ela também nunca exigiu muito de mim. Nem muito nem pouco. Não exigiu nada. Deu-me liberdade total, coisa rara numa relação, ninguém queria mandar no outro, e os sucessos do outro eram sucessos nossos, pelo menos os dela era como se fossem meus.

Mas tudo isto foi por água abaixo desde que Madonna veio para Lisboa, tem advogados e não sou eu, vai jantar fora e não é comigo, quer uma casa e não é a minha, procura e não me procura. Era menos provável ela vir viver para perto de mim do que eu para perto dela. Antes as divas portuguesas queriam sair, agora as divas americanas vêm. Há uns vinte anos a elite indignante ofendia-se por Maria João Pires querer sair de Portugal, hoje essa mesma gerontocracia indigna-se por Madonna estar em Portugal e muitos dos portugueses estarem entusiasmados com isso. Eu, pela parte que me toca, estou triste, sobretudo pela parte que não me toca. É que antes havia uma explicação, a distância, o tempo, o espaço, as vidas, o silêncio que nunca se desinstalou, hoje não há nada. Desde que estamos na mesma cidade, como é que eu explico que continuamos separados, sem nunca nos vermos?

E depois há ela ter posto o miúdo no Benfica, sem sequer ter pensado no que eu podia pensar. Claro que os miúdos são dos clubes que querem, e se calhar foi treinar ao Sporting e não ficou, que é bem mais exigente do que essa coisa do Benfica, mas eu compreendo, não tem referências e o Benfica é maior, e sempre essa mania de que maior era melhor. Que ele seja feliz por lá. Eu sei que pelos filhos fazemos tudo, que pelo miúdo fazes tudo, mas vê lá ao que te prestas, não quero um dia ligar a televisão, estar a começar o Benfica, e ver-te ali no círculo central ao lado do Barbas, a fazer de Fafá de Belém.

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