Quem espera

Das coisas mais bonitas de ver é uma boa vingança, e uma boa vingança, que é justiça noutro fuso horário, é uma coisa que não acontece muito. E não acontece muito porque primeiro é preciso ter uma boa razão, e o ideal é que o atacante tenha sido gratuito, cão, raivoso. Depois, uma boa vingança só vale a pena contra alguém poderoso. A gente não se vinga de criaturas irrelevantes que aparecem ao caminho, nem de burocratas frustrados, nem do vizinho de cima que nunca fecha bem a porta do elevador, nem de invejosos maldosos. Só de gente com poder. Por isso a boa vingança tem de ser desproporcional, excessiva, e tem de ser instrumental, en passant, fazer-se o bem através desse mal. E simbólica, visível, poética. Sem estética, mesmo a boa vingança é só maldade.

Foi isso que fez anteontem McCain a Trump. Esticou o braço, a mão aberta, aguardou que olhassem para ele, que lhe dissessem com a cabeça que podia votar, e num gesto rápido fecha a mão, rodando-o para a direita, baixou o braço, dirige-se determinado ao seu lugar sozinho, depois de com o seu voto ter afundado as pretensões republicanas de afundarem o Obamacare. McCain esteve preso mais de cinco anos no Vietname, foi capturado quando se ejetou do avião atingido por um míssil, torturado, dois anos em solitária. Durante a campanha, Trump disse que McCain não era nenhum herói de guerra e que gostava de pessoas que não tinham sido capturadas. Agora foi a vez de McCain, regressado ao Senado depois de uma operação a um cancro no cérebro, se rir. McCain é um forte crítico do Obamacare, mas o que vale isso perante o momento único que tinha pela frente? Quantas vezes um mau sentimento não traz um bom resultado? E usou o braço e a mão que vemos engessados e esticados nas fotografias após a sua captura, bem parecido por sinal. Estou convencido de que Deus não perdoa quem deixa passar uma boa vingança.

Também houve duas senadoras republicanas que fizeram o mesmo, e se se tivesse feito sempre o que McCain sugeriu o mundo teria o dobro das guerras, é verdade, mas será apenas dele um dos mais bonitos momentos da política. É para estas coisas que vale a pena esperar, por pouco mais.

Não sei se alguém alguma vez fez a conta, mas valia a pena fazer, contar bem as horas perdidas em Portugal à espera, à espera nos correios, na paragem, na fila da segurança social. A imagem das pessoas à porta da segurança social à espera de serem atendidas, saber uma resposta, resolver um assunto, perceber o que as espera, se são estes os papéis que lhes pediram da última vez e que finalmente conseguiram trazer do contabilista do antigo patrão, ou se são outros, ou mais, e se vai ser preciso voltar mais um dia, porque o tempo neste sem nexo tântrico se mede aos dias de cada vez.

Em Entrecampos um espetáculo permanente de miséria civilizacional, olhares vazios, resignados - encostados à parede. Até quando? E isto tem um efeito perverso que acaba por afetar desde logo os funcionários que têm de lidar com estas filas e filas de pessoas descontentes, desesperadas, irritadas, ainda mais confusas sobre o que querem. Quem está ao público fica com as culpas da espera, quando as culpas moram noutro lado, no lado do planeamento, da gestão, e até a montante na complexidade obscura do sistema.

Ao contrário da administração fiscal, com que todos acabam por se relacionar, quem manda, aqueles que decidem, não se relaciona com a segurança social, não pede subsídios, não é enganado pelo patrão, não tem de lá voltar porque a informação que quer só depois de dia 30. Há sempre senha para quem pode. O sistema nunca está em baixo para quem está em cima do sistema. E talvez isto afaste mais quem poderia resolver da resolução.

Em 2012 a Universidade de Duke publicou Patients of the State: The Politics of Waiting in Argentina, de Javier Auyero, sobre o significado do tempo que os pobres passam à espera no departamento central da segurança social de Buenos Aires, e o que isso significa até como instrumento de controlo das pessoas pelo poder do Estado. Independentemente desta última conclusão, tanto lá como cá estas esperas têm o pior efeito sobre quem precisa do Estado, que através da espera se convence que não recebe por direito, mas por graça, por se ter portado bem, por se ter posto na bicha, sugadinho, uma vez, duas, as que forem preciso, as que te dissermos que tens que te pôr. O exemplo de uma sociedade que não valoriza o tempo. Pior - o exemplo de uma sociedade que não valoriza o tempo dos que estão na fila da segurança social. No início do livro de Auyero está a aquela parte do filme Casablanca em que se diz que era por Lisboa que se chegava à liberdade da América, que quem tinha dinheiro chegava depressa a Lisboa, mas quem não tinha, tinha de esperar em Casablanca, e esperar, esperar, esperar. Era a Segunda Guerra, e os americanos já andavam pela costa do Norte de África a defender a nossa liberdade. Entre eles o pai de McCain.

Esta gente que espera à porta da segurança social nunca terá a oportunidade para uma boa vingança. Ou terá? Tracy Chapman diz que sim, no Talkin"bout a Revolution, que enquanto esperam nas filas do desemprego vão falando, baixinho, sobre uma revolução. E enquanto não chegar a revolução, ou não lhes passarmos a respeitar o tempo, vão votando nos Trumps.

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