Em dia de Benfica campeão, um texto sobre o nosso grande amor. Cresci no Lumiar, um quarto de hora a pé do estádio do Sporting. No princípio não ligava muito a futebol, compreensível decorrência de uma ligeira descoordenação motora conjugada com um ambiente familiar afutebolístico, e como não era gordo nem para ir à baliza dava, chegando mesmo a ser o dono da bola e não jogar, e sempre o último escolhido quando se faziam linhas (ainda se fazem linhas para escolher jogadores, esse draft de recreio?). Às tantas, mais precisamente em 1984, fiquei do Porto depois de ir assistir a uma final da Taça em que o Porto ganhou. Tinha 7 anos e foi o primeiro jogo de futebol. Era do Porto, mas sem ligar muito. Ninguém mais era do Porto, tinha essa piada. Depois vieram as vitórias nacionais e europeias, o calcanhar do Madjer. Tive um troféu, uma bola assinada pelos jogadores, que me arranjou o sempre generoso José Lello. Em 1990, comecei a treinar andebol no Sporting, fiz amigos para a vida, e tinha cartão de sócio-atleta que dava entrada gratuita em todos os jogos de qualquer modalidade. Vestir uma camisola de um clube e ser de outro era demasiada contradição, e mudei-me para o Sporting, assim podia ser do clube de grandes amigos (a C., o M., o A., o R.).
Passei a passar fins de semana inteiros no Sporting, futebol, voleibol, andebol, atletismo. Em 1991, na vitória da Taça das Taças no hóquei houve uma invasão de campo na nave, rasguei as calças mas valeu a pena: andámos com o Sousa Cintra em ombros. Boa mudança, do Porto para o Sporting, nesses dez anos o Porto seria campeão em sete. Era preciso recuperar anos de atraso, de conhecimento futebolístico e devoção sportinguista. Lia os jornais todos, três, ia aos jogos, primeiro a superior sul, junto dos ultras, depois um lugar cativo (e cativo é uma boa palavra para aquilo que é ver um jogo junto da aristocracia quando comparado com a liberdade animal de uma claque). Depois vieram dois campeonatos, dois momentos raros em que se vislumbra um tipo de felicidade, a felicidade irracional, gutural, em que se acredita que finalmente o mundo foi justo.
Mas um dia, em 2003, acabou tudo, comecei a ter cada vez menos tempo e era preciso cortar em algo e o algo foi o Sporting. E como em qualquer adição, o corte foi, teve de ser, radical. Foram dez anos sem entrar num estádio, sem saber o nome de um jogador. Em 2013 acompanhei um amigo a um jogo da pré-época contra a Fiorentina, um sacrifício que ia fazer a um sítio que já não me dizia muito para aproveitar 90 minutos de conversa com um amigo muito ocupado. Pensava eu. Assim que entrei no estádio o coração disparou, todos as reações adormecidas voltaram, como as descrições que se lê de antigos (outros) dependentes a ver drogas ou a reentrar num casino. Desde então, aos poucos, tenho voltado.
Devo ao Sporting horas intensas de um prazer que não há senão vivendo um estádio, senão amando um clube, a irracionalidade pura, cada vez mais acredito que é componente fundamental da vida (a religião preenche um espectro de não racionalidade bastante diferente; o amor, mesmo a paixão, muito mais racionais do que o clube e a religião). E não é ao futebol a quem devo esse prazer, é ao Sporting - não perdi, não perderei um minuto com um Real Madrid -- Barcelona, ou com uma final da Champions, por melhor que seja o futebol-desporto. No Sporting aprende-se a amar sem quase nunca ganhar. Mas também a odiar.
Estou a escrever este texto com o Benfica já campeão, mas se tivesse havido uma surpresa no resultado não ia deixar de sorrir. O antibenfiquismo, que é uma vertente do bom sportinguismo, deve ter uma função qualquer, de substituição de maus instintos, de outras formas de violência. Acreditar-se que um sportinguista é intrinsecamente melhor do que um benfiquista é um sentimento irracional, mas que por ter essa função não se deve reprimir, deve até acarinhar-se.
Mas devo mais ao Sporting, devo-lhe ter-me aproximado de pessoas especiais - foi também em parte esse sportinguismo que me levou a trabalhar com Miguel Galvão Teles (escrevi sobre isso n"O Jurista Que Dava Sete a Um aos Outros Todos) e foi o Sporting (e a culinária) que solidificou a minha amizade com o Miguel Poiares Maduro.
O Miguel Maduro é um académico global brilhante (coisa rara na lusa academia jurídica), foi um advogado geral no Tribunal Europeu relevantíssimo com opiniões revolucionárias, e recentemente não resistiu à tentação da política, à qual trouxe frescura e abriu novos caminhos, como nunca resiste quem quer mudar o mundo, política em que voltará a ser relevante (e, se fosse preciso provas, bastava analisar a embirração que por ele nutrem os espertíssimos Costa e Marcelo).
E por querer mudar o mundo, e por adorar futebol, acabou na política do futebol mundial, na FIFA, a presidir a um comité de ética naquilo que parecia uma tentativa de reforma do organismo depois do tsunami de escândalos. E acabou agora expulso da FIFA por ter feito frente à Rússia na sua tentativa de politização ilegal do futebol. E assim o mundo inteiro - porque as coisas do futebol são coisas do mundo inteiro - ficou a conhecer o Miguel e outra das suas qualidades, que por detrás dum profundo otimismo, de um especial instinto para encontrar pontes e concórdia, está a dureza irredutível da integridade e do carácter, uma coisa que se chama coragem. E a coragem é uma forma especial de glória, da glória que não vem da vitória mas do esforço, da dedicação e da devoção.
Devo muito ao Miguel, mais do que caberia aqui, mas devo-lhe também ter-me arrastado para aquele jogo com a Fiorentina em 2013 e ter-me trazido de volta à irracionalidade pura do Sporting.
*Este título foi sugerido pelo meu filho Jaiminho, que segue o avô homónimo no benfiquismo..., e que mo sugeriu para ter "dez mil comentários negativos"