Memórias de paisagens com Pedro Lima
Como é que um actor exprime as vivências da sua personagem? Eis a pergunta, fascinante e perturbante, que assombra todos os trabalhos de representação. Creio que Pedro Lima era um actor que, ao formulá-la, de uma maneira ou de outra, a fazia acompanhar por uma interrogação paralela, sem dúvida mais arriscada: o que é isso de exprimir o que quer que seja?
Tive o privilégio de o dirigir num espectáculo teatral, "Paisagens Americanas", cuja encenação partilhei com o Rui Pedro Tendinha. Foi em 2004, a convite do nosso amigo João Lourenço, que com esse título levamos ao palco do Teatro Aberto três pequenas peças de Neil LaBute, tendo tudo começado com um elenco formado por Juana Pereira da Silva, Lígia Soares, Pedro Penim, Rui Morisson e Sofia Aparício.
E digo "começado" porque a maravilhosa entrega de todos eles foi subitamente interrompida por uma ocorrência dramática: logo após o primeiro fim de semana de representações (a estreia ocorreu no dia 19 de março), Rui Morisson sofreu um acidente num pé, ficando impossibilitado de continuar. Como encontrar rapidamente uma alternativa para manter o espectáculo em cena? Pedro Lima, justamente, foi quem entrou na nossa equipa.
Que ele tenha conseguido aprender o texto em poucos dias, integrando-se nas marcações e dinâmicas do espectáculo, eis uma proeza reveladora de um paciente e impecável profissionalismo. Em todo o caso, ainda hoje penso como o seu trabalho desmentiu, ponto por ponto, o cepticismo com que, confesso, comecei por encarar a situação de nos vermos compelidos a recorrer a um "substituto".
Nas nossas "Paisagens Americanas", contracenando com Sofia Aparício, em "Terra dos Mortos", a terceira e última peça do espectáculo, Pedro Lima contribuiu de forma decisiva para colocar em cena algo de tão americano quanto universal, admiravelmente exposto pelo texto de LaBute. A saber: uma culpa íntima que se desdobra numa maldição universal. Tratava-se de colocar em cena a dor, a melancolia e também a esperança que tudo isso pode envolver.
Lembro-me que utilizamos duas canções belíssimas, por motivos naturalmente diversos, emblemáticas das tensões de um certo imaginário americano do "destino" - eram elas A Case of You, de Joni Mitchell, e Last Nite, de The Strokes.
E penso, em particular, na pose austera de Pedro Lima, capaz de colocar em cena essa vibração muito especial que desafia a própria identidade do actor: à boca de cena, imóvel, ele contemplava o horizonte (nós, afinal, sentados na sala) e podíamos sentir que aquela personagem experimentava convulsões inacessíveis à ilusória transparência das palavras. Por ter dado a ver isso no palco da Sala Azul do Teatro Aberto, a gratidão com que o recordo é infinita.