Não me despedi de Luis Sepúlveda
O escritor chileno Luis Sepúlveda era um fã de Portugal e cá vinha várias vezes. Por prazer, gostava das conversas e do que comia, e porque também a isso era obrigado, afinal tinha uma legião de fãs muito grande no nosso país e não podia faltar à Feira do Livro de Lisboa. Outro evento em que marcava sempre presença era o das Correntes d"Escritas, o encontro literário de línguas portuguesa e espanhola que se realiza na Póvoa de Varzim. Por ser visita habitual do evento ninguém estranhava reencontrá-lo todos os anos.
Nem eu, que me cruzei com ele logo à chegada e nos cumprimentámos, sem poder imaginar que se estava a escrever o último episódio da vida do escritor. O chileno era um entrevistado habitual em cada livro que lançava na nossa língua e vê-lo nas Correntes, na Feira do Livro ou no hotel onde ficava em Lisboa, criou em mim aquela imagem de que "para o ano há mais". Não há desde há algumas horas e agora resta-me reler essas conversas que eram sempre marcadas por uma perspetiva histórica, nem que fosse aquando do lançamento de uma das suas fábulas infanto-juvenis, pois sempre existia um momento em que os personagens deixavam transparecer os acontecimentos que guiam a vida dos adultos.
A vida de Sepúlveda tinha uma sombra que o perseguia, a de ter estado algures no seu passado junto dos últimos momentos do presidente chileno Salvador Allende, assassinado no golpe militar de Pinochet que o depôs. E era-me difícil olhar para ele enquanto escritor de livros para jovens sem que estivesse com uma arma nas mãos. Não que a conversa dele fosse por aí, antes porque não se conseguia separar as narrativas escritas tantas décadas depois daqueles instantes revolucionários que o obrigaram ao exílio e, a dado momento, à escrita.
"O Velho que Lia Romances de Amor" foi logo um sucesso. O contador de histórias que existia em Luis Sepúlveda agradava aos leitores e ambas as partes fizeram o pacto de continuar a escrever e a ler. Autor e leitor eram inseparáveis na sua obra. Tanto assim que nesta manhã de quinta-feira a notícia a sua morte emocionou milhares de leitores - já tive testemunho dessa emoção - e torna-se um emblema das mortes trágicas dos tempos dramáticos que vivemos. Dificilmente alguma outra pessoa esteve na boca das pessoas de forma tão sincera desde que se soube que estava infetado. "E o Sepúlveda, como está?" era uma pergunta que me faziam e que eu próprio também, adiando saber a resposta enquanto não fosse a desejada.
Há dias em que certas notícias não fazem falta. A da morte de Luis Sepúlveda é uma delas. Até porque todos os que estiveram nas Correntes em fevereiro acreditavam que para o ano voltaríamos a estar juntos e que o escritor iria ser o centro das atenções, principalmente das bocas: "Então, grande susto que nos pregaste". E que ainda viria à Feira do Livro de Lisboa para lançar algum livro novo, porque estava sempre a escrever. Infelizmente, não me despedi de Luis como deveria ter acontecido. Fica a memórias daquele jeito solene que por vezes colocava nas conversas, entre risadas e boas histórias para animar a entrevista. Nem eu, nem os leitores, nem os que o admiravam e tiveram momentos de prazer com a leitura de narrativas em que cada um viajava a partir das palavras que o autor juntara em páginas que se liam e nos inspiravam. Adeus Luis Sepúlveda.