O mistério do ministro
Pode dizer-se que o professor Mário Centeno é o mais feliz ministro das Finanças da democracia, acumulando três características que nenhum antecessor conseguiu: redução do défice, grande popularidade mediática e confiança do primeiro-ministro e maioria. Muitos dos precursores gozaram de uma destas três vantagens; alguns, poucos, combinaram duas; nem um único obteve todas. Não sabemos por quanto tempo, mas há já ano e meio que Centeno vive nesta excelente situação. Este é o mistério do ministro.
O segundo elemento, o apoio popular, é o mais fácil de explicar. O executivo de António Costa tem sido, desde o início, uma coqueluche para os media e a delícia dos sindicatos. Nos quarenta anos de democracia (e ainda podemos juntar mais cem, de 1820 a 1926) não existe registo de um governo com um clima tão favorável, sem contestação social e críticas publicadas.
Este apoio é facilitado pelo crescimento da economia que, mesmo baixo, contrasta com a anterior recessão; mas a recuperação começou em meados de 2013, e não existe paralelo entre a serenidade actual e a raiva e a turbulência nos dois anos anteriores a 2016. Isso mostra que a estima vem menos da realidade que da forma de a interpretar. Com um governo de outra cor, nas mesmas condições e com a mesma política, os protestos dos militantes e as críticas dos analistas seriam ensurdecedoras. Parece evidente que o apoio da extrema-esquerda faz maravilhas pela imagem pública e a serenidade laboral de um governo. Com PCP e BE a bordo, compra-se o silêncio da contestação, mesmo no meio da mais brutal austeridade.
Esta situação insólita demonstra dois aspectos que, apesar de velhas suspeitas, surgem de forma inequívoca. Em primeiro lugar, os subversivos, resmungões e contestatários são sobretudo da esquerda; bastou dar-lhes poder e o país vive em paz. A direita, onde alegadamente pululam os caceteiros e que agora deve andar furiosa, mal se ouve. Para a democracia funcionar sem tumultos basta contentar os socialistas radicais.
Em segundo lugar, nunca mais imprensa e sindicatos poderão convencer-nos de que são isentos e imparciais. Podem apregoar que a sua finalidade é informação de qualidade e defesa dos trabalhadores, mas estes meses de namoro com o poder mostram a força esmagadora das directivas ocultas que realmente dominam essas actividades. Centeno, que mantém excelente imagem impondo o feroz aperto orçamental que força o défice mínimo da democracia, é apenas o topo deste enviesamento.
Mais intrincados são os outros termos do mistério. A solidariedade interna da equipa governamental é muito mais enigmática do que a paz social e o desvelo jornalístico. Como é que o campeão das cativações, responsável pelo maior ataque à operação e à qualidade dos serviços públicos, consegue evitar protestos dos colegas e aparelhos ministeriais, mantendo carta branca do PM? Em todos os governos, o respectivo ministro das Finanças tem como maiores inimigos os outros ministros, que o encontram como obstáculo às suas estratégias sectoriais. Esta animosidade inevitável piora em momentos de consolidação orçamental. Nesta coligação impossível do XXI Governo Constitucional, o apoio ao aperto financeiro desafia a lógica democrática.
O último elemento deste intrigante tripé é a descida do défice. Os relatórios do Conselho das Finanças Públicas e Unidade Técnica de Apoio Orçamental mostram o que aconteceu, mas não levantam o véu da dúvida. Porque os meios utilizados para atingir o sucesso devem mais a expedientes oportunistas do que a rigor técnico. Cortes selváticos no investimento e despesas de operação, receitas extraordinárias e impostos originais não constituem receita válida e consistente para gerir um país. Corta-se onde se pode, não onde se deve. Assim, em cada mês renasce a interrogação do que se conseguirá.
Isto leva-nos à questão decisiva: será que o indubitavelmente mais bem-sucedido ministro das últimas décadas é também um bom ministro das Finanças? A resposta não levanta hesitações. A dívida pública continua a subir, e até acelerou face ao período anterior. Não existem medidas estruturais ou sequer estratégia orçamental sólida e segura. Centeno, decerto forçado pelas restrições políticas, limita-se a sacrificar tudo ao objectivo imperativo da meta do défice em percentagem do PIB. Entretanto, o cancro financeiro, público e privado, agrava-se em surdina, sob a aparência de sucesso de um governo alheio à sua função de criar uma situação sólida e sustentável de apoio ao progresso económico e social. Centeno é ministro de um número só, mas a exigência europeia, se pode ser instrumento, nunca é objectivo final.
Esta foi a grande crítica que a actual maioria fez à austeridade do governo anterior. Quando a imprensa, saindo do torpor admirativo, começar a criticar a linha das finanças, bastará repetir com mais vigor aquilo que, na oposição, Centeno disse dos seus dois imediatos antecessores. Aí não há mistério.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico