O erro liberal
O grande perigo da liberdade é favorecer os fortes. Por isso uma sociedade verdadeiramente livre impõe uma estrutura legal sólida e justa que proteja a autonomia dos que necessitam.
O esquecimento desta verdade foi o grande erro dos liberais clássicos, e ninguém o denunciou com mais verve e eficácia do que a esquerda. Por isso surpreende ver hoje essas forças empenhadas a cair precisamente no mesmo erro, aplaudidas pelos liberais e ajudadas pela apatia da sociedade. Chega a ser chocante ouvir os nossos dirigentes, que se dizem radicais e muito preocupados com o controlo do Estado sobre as relações económicas e laborais, advogarem o mais completo laxismo em áreas muito mais influentes, como a eutanásia.
O poder é uma entidade complexa e multiforme. Nem sempre os que exercem maior domínio são reconhecidos. A sociedade admite a influência de políticos, polícias, militares, empresas e milionários, e procura regular os excessos que possam cometer contra a liberdade cívica. Mas outros campos, onde a preponderância de alguns é ainda maior, andam cada vez mais soltos.
Poucas profissões são mais poderosas do que a medicina. O clínico tem realmente poder de vida ou de morte e, em grande medida, tudo fica à responsabilidade da sua consciência. Deve dizer-se que todos gostamos muito desse poder. Graças a ele as nossas vidas são incomparavelmente mais longas e agradáveis do que ainda há poucas décadas. Embora menos celebrados do que os avanços nas tecnologias da informação ou na maquinaria, os ganhos conseguidos na saúde são, sem dúvida, os que mais impacto tiveram na nossa vida e bem-estar. E são maravilhosos.
Só que, como diz o Homem-Aranha, "com grande poder vem grande responsabilidade". Precisamente porque todos dependemos cada vez mais dos profissionais de saúde, estas actividades têm de ser cada vez mais cuidadosamente reguladas. Se alguém usar a força espantosa da medicina com maus intentos, o sofrimento e a injustiça podem ser proporcionais aos ganhos que o bom uso está a ter em todo o mundo.
Claro que há muito existem formas poderosas de regulação e controlo, nos hospitais e ordens profissionais. Mas as próprias características do acto médico tornam difícil a vigilância e abrem múltiplos campos de ambiguidade e arbitrariedade. É por isso que, através do Juramento de Hipócrates, se pode dizer que esta foi a primeira de todas as profissões a usar um código deontológico explícito. Por tudo isto, surge como paradoxal e até incompreensível que, numa das situações mais dramáticas e complexas do problema, o Estado decida alhear-se totalmente, demitindo-se da sua função primordial de proteger os fracos, como se prepara para fazer com as propostas de lei acerca da eutanásia.
A situação dos doentes terminais é, necessariamente, das mais angustiantes, dolorosas e desafiantes que podem existir. As muitas pessoas envolvidas, do paciente aos familiares, passando por vários outros interesses, incluindo o médico e o hospital, enfrentam escolhas complexas e pungentes. Em particular, sobretudo após os avanços recentes da ciência, é muito difícil encontrar o equilíbrio entre o encarniçamento terapêutico, que tortura o doente para manter uma vida aparente, e a negligência ou mesmo o homicídio, omitindo tratamentos razoáveis. Só quem nunca viveu dramas assim pode achar linear o juízo moral nestes casos, e todos temos de ter grande respeito por aqueles que tomam decisões tão exigentes, em particular pelos médicos, que o fazem regularmente. Neste quadro surge quase como irresponsabilidade criminosa que os políticos tomem aqui uma atitude liberal em nome de uma ilusória "morte digna". O que se está a fazer é simplesmente dar liberdade para matar. Portugal, que tanto se orgulha de ser dos primeiros países do mundo a abolir a pena de morte, prepara-se para permiti-la em inocentes enfermos. A hipocrisia de achar que a alegada concordância do moribundo desculpa a destruição da sua vida por outrem, que moralmente tem o dever de a proteger, só acrescenta infâmia à barbaridade. Aqui, muito mais do que nos contratos de trabalho ou nas relações comerciais, estão em jogo valores essenciais, e o Estado não pode deixar de tomar a sua função imperiosa de defesa dos mais fracos.
Esta posição laxista seria compreensível na direita liberal, que de facto a toma. Mas a esquerda, sempre intervencionista e preocupada com a justiça, assumiu ultimamente nas questões da vida e família a atitude tradicional dos adversários. Nos casos da legislação do casamento, reprodução, droga, nascimento, morte, etc., tem-se assistido a uma galopante liberalização, em nome de uma modernidade boçal e oportunista. No caso-limite do aborto, permite-se matar os mais frágeis de todos: as crianças, que têm toda a vida diante de si, só porque não dão jeito aos responsáveis pela sua concepção. Assim o Estado, dizendo defender a liberdade, deixa de proteger aqueles cuja liberdade sofre risco mortal.