Economia paliativa
Em 2008, o défice orçamental fixar-se-á em 2,2% do PIB, que representa o valor mais baixo dos últimos 30 anos" (Relatório do Orçamento do Estado para 2009, p. I). Logo no ano seguinte, o mesmo primeiro-ministro, José Sócrates, e o mesmo ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, teriam o maior défice da história de Portugal, 9,8%, só ultrapassado pelos 11,2% do ano seguinte. Passaram menos de oito anos e as nossas cidades estão cheias com a mesma mensagem: "2,1%, o défice mais baixo da nossa democracia." Haverá aqui um padrão?
As diferenças são importantes. O valor de 2008 acabou por se revelar o dobro do que se pensava, 4,4%, superior a quatro dos dez anos anteriores. Além disso, vivia--se então uma das maiores crises financeiras mundiais. Desta vez o resultado parece mais sólido, embora a frase também seja formalmente falsa: o défice de 2016 é superior a todos os anos democráticos de 1852 a 1914, exceptuando 1868 e 1870.
Apesar disso, o cartaz do PS tem razões indiscutíveis para celebrar um défice destes, entretanto reduzido a 2%. Conseguido em 83% por descida de despesa, justificam-se parabéns a Mário Centeno e sua equipa. Além disso, as primeiras previsões económicas para 2017 desenham um cenário de aceleração da economia, com recuperação do investimento e manutenção do equilíbrio externo. A situação é claramente diferente de 2009. Estará tudo bem?
Apesar de tudo isto, persiste o mesmo problema que condenou o feito de Teixeira dos Santos e, mais cedo ou mais tarde, destruirá o de 2016: os cortes e apertos orçamentais foram importantes, e difíceis de conseguir, mas nunca passaram de ajustamentos superficiais, longe do cerne estrutural da dificuldade. A qual, em certas dimensões, está pior do que em 2008. Em ambos os casos, a política é meramente "paliativa", usando analgésicos e esteroides para conseguir exames positivos, sem extirpar o cancro que rói o doente. De novo, iremos de vitória em vitória até à derrota final.
Para sermos justos, temos de dizer que a culpa profunda não é dos ministros das Finanças. Há 200 anos que a nossa democracia, quando não está em euforias despesistas ou colapsos financeiros, o melhor que consegue é este padrão de pseudodisciplina, mantendo incólumes as estruturas viciadas. O peso dos eleitores interessados em pensões, salários e subsídios é tal que torna impossível uma verdadeira consolidação orçamental feita em liberdade, que, no entanto, é sempre prometida e repetidamente proclamada, nunca convincente. Por muitos sucessos que se tenha, apenas se adia o colapso inevitável, antes da euforia seguinte.
Centeno trouxe novidades a esta tragédia clássica sem, no entanto, alterar a base do enredo. Primeiro, tem tido a sorte que faltou a Teixeira dos Santos. A política de juros baixos do Banco Central Europeu, além de maquilhar a falência técnica do Estado português, permitiu uma redução de mais de 650 milhões nos encargos financeiros, só ultrapassada pela feroz queda do investimento público de mais de 1100 milhões. Esta é a segunda originalidade: o total desinteresse pelo aparelho produtivo, colocando o investimento estatal no valor mais baixo dos últimos 22 anos.
A terceira inovação é a descarada contradição no discurso. O governo apresentou-se desde o princípio como abertamente antiausteridade, repudiando os terríveis cortes e apertos dos últimos anos, para depois os agravar impiedosamente. Pior, o instrumento preferido foi a "captivação", que só por si manifesta a duplicidade e a dureza do exercício: as verbas são prometidas, mas nunca chegam a ser disponibilizadas. Este método mesquinho é usado há décadas, mas os 843 milhões de 2016 são raros, devido aos violentos e compreensíveis protestos dos serviços afectados. Protestos esses que, desta vez, primaram pela ausência.
Isso criou um momento histórico: o primeiro episódio de violenta austeridade conseguida sem tumultos e por um governo que mantém a popularidade. Uma maioria que se gaba, ao mesmo tempo, de abandonar a austeridade e ter o menor défice da democracia. É provável que a participação da extrema-esquerda na solução governativa tenha ajudado fortemente esse clima de paz social e mediática. Com as claques na equipa de arbitragem ninguém insulta o árbitro.
Um clima assim teria criado, pela primeira vez em décadas, uma real oportunidade para uma verdadeira reforma do aparelho de despesa pública. Oportunidade certamente ilusória, devido aos compromissos impostos no acordo à esquerda. Esse autoriza, quando muito, a dose de cuidados paliativos aplicada, evitando a indispensável intervenção cirúrgica.
Os feitos orçamentais de 2016, e a forma paradoxal da sua obtenção, estão sem dúvida entre os mais notáveis da nossa atribulada história financeira. Apesar disso, os verdadeiros problemas das contas do Estado e do aparelho produtivo mantêm-se inalterados. O colapso, quando vier, parecerá uma surpresa e um acidente. Como em 2009.