De resto, tudo bem!

Portugal vive um clima de serenidade e optimismo graças ao desvio dos poucos meios disponíveis para certos grupos privilegiados pela esquerda, o que pelos vistos aclama a opinião pública e disfarça a situação
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Portugal vive um clima de serenidade e optimismo. O consumo das famílias cresce, o défice orçamental está em mínimos históricos, a sociedade sente-se esperançosa. Depois dos anos terríveis de crise e crispação, o actual Governo conseguiu este ambiente, notável e inesperado, que há muito não se via, e é verdadeira bênção de que todos beneficiamos. É verdade que os enormes problemas do país não foram resolvidos, e até se agravam debaixo da aparência positiva. Mas, de resto, tudo bem.
A economia recupera há três anos da grande recessão de 2011-2013, mas sem ultrapassar um crescimento anémico, até desacelerando em 2016. O investimento é mínimo e nem chega para repor o desgaste do capital nacional. Como a população activa perdeu 400 mil pessoas na crise, a capacidade produtiva portuguesa está em degradação. Mas, tirando isto, a economia é excelente.
Num campo, pelo menos, o sucesso económico mostra-se estrondoso: o desemprego caiu de 17,5% no primeiro trimestre de 2013 para 10,5% no último de 2016. Isto acompanhou a recuperação da população activa, que finalmente começou a crescer no ano passado, aumentando mais de 50 mil pessoas. Claro que, em grande medida, isso deve-se à odiada liberalização das leis laborais imposta pela troika e governo anterior, que a actual maioria anseia por inverter. Mas, esquecendo isso, é um grande êxito.
A banca vive assombrada por décadas de euforia e má gestão e crescentemente estrangulada pela referida apatia produtiva. Precisa urgentemente de profundas reformas e injecção de capital fresco, cada vez mais difícil na actual conjuntura. O único sector onde o crédito tem dinamismo significativo são as famílias: o montante de novos empréstimos para consumo mais que duplicou, e para habitação triplicou desde inícios de 2013. Entretanto os novos financiamentos a empresas estagnam em valores mínimos. Este panorama desenha claramente uma bolha consumista, semelhante à que nos levou ao colapso de 2011, alimentada desta vez por uma banca mais frágil. Mas, fora isto, as finanças estão sólidas.
Politicamente, o grande contributo do Governo está em ter conseguido demonstrar que "Afinal havia, e há, alternativas melhores do que a austeridade excessiva". Este é o título de um artigo escrito, faz hoje precisamente dois anos (18/Fev/2015; Jornal de Negócios), pelo professor Caldeira Cabral, agora Ministro da Economia; a mesma ideia foi colocada na boca do senhor Primeiro-ministro pelo reputado Financial Times há mês e meio (2/Jan). Aqui, ao menos, existe um triunfo sólido que tem, não apenas efeitos nacionais, mas um alcance estratégico, teórico e global. Temos de dizer que se trata de uma mentira rematada, mas tirando isso, tem grande alcance.
Os problemas da frase começam logo na comparação implícita: a austeridade foi imposta quando o défice orçamental era 11% do PIB, em 2010, e, graças a ela, foi reduzido para os 4,4% que o actual Governo herdou. Falar de alternativas agora é fácil, mas não significa que elas existissem na altura. Só esquecendo este detalhe é que a frase tem enorme significado.
A ideia é enganadora pois a austeridade, não só não foi invertida pela nova orientação, mas até se aprofundou e alargou. Só assim se explica que o desequilíbrio tenha continuado a descer para os 2,4% que o Governo promete ter conseguido o ano passado. Não é razoável orgulhar-se, ao mesmo tempo, de acabar com a austeridade e reduzir o défice. Boa parte desta redução é ilusória, usando medidas extraordinárias que, pelos vistos, só são boas nos governos da esquerda. Mas existem também cortes reais e dolorosos. Isso nota-se pouco porque eles foram feitos, não nos grupos mediática e politicamente mais influentes -pensionistas, funcionários e afins-, mas nos contribuintes, empresas e funcionamento dos serviços, com a famigeradas captivações. Em alguns casos a carga foi até desviada para os mesmos, como na substituição do IVA da restauração pelo imposto das bebidas. Assim, a tese do fim da austeridade não passa de uma genial operação de cosmética financeira, com o alarde à volta dos alívios pontuais ocultando os apertos acrescidos. Isso é possível sobretudo graças à cumplicidade da imprensa domesticada, que ultimamente acha sempre que anda tudo bem.
Pior de tudo, a frase é ainda mais falsa porque, mesmo mantendo a austeridade, o problema está a agravar-se. Os mercados internacionais estão virtualmente fechados à nossa divida pública, e o Estado só não faliu graças às compras do BCE. Mesmo assim, os juros a 10 anos da nossa dívida já estão a níveis semelhantes de finais de 2010, meses antes do anterior colapso. Fora isto, a política orçamental é um êxito.
Portugal vive um clima de serenidade e optimismo graças ao desvio dos poucos meios disponíveis para certos grupos privilegiados pela esquerda, o que pelos vistos aclama a opinião pública e disfarça a situação. Esta é terrivelmente alarmante, mas, de resto, tudo bem.

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