Intriga internacional
Em traços gerais, o governo brasileiro defende que existe uma trama internacional, muitíssimo bem orquestrada, com o objetivo de desmoralizar e de desprestigiar o país aos olhos do mundo.
Consiste essa trama numa campanha brutal de desinformação perpetrada por instituições internacionais movidas por interesses escusos e associadas a parceiros brasileiros, que, com o objetivo cego de atacar o governo, prejudicam o próprio Brasil, num misto de oportunismo e de falta de patriotismo.
Segundo a argumentação do Palácio do Planalto, essas instituições, as estrangeiras e as nacionais, muitas vezes sob o formato de Organizações Não Governamentais com ótima imprensa, servem-se ainda do apoio de estrelas globais da música ou do cinema para obterem mais impacto e relevância mediáticos.
Nessa perspetiva, compete, portanto, ao governo, com o apoio do povo e, claro está, de Deus, que é sempre chamado para estas coisas mesmo sem lhe perguntarem nada, mobilizar as tropas.
À frente de todas as tropas, porque a coisa adquiriu, como foi referido, uma dimensão mundial, estão os embaixadores e os cônsules planeta afora, no sentido de restabelecer a verdade oficial de Brasília junto aos governos dos outros países.
Do esforço diplomático de desmascarar o tal rebuscado complô, constarão notas de repúdio em massa e cartas furiosas em série para a imprensa que ouse contrariar a versão oficial.
Além de uma ofensiva de relações públicas para demonstrar que não, que o Brasil não age nada como se diz por aí, que é um país de gente trabalhadora, ordeira e temente a Deus (ei-Lo de novo).
A ofensiva de relações públicas do governo brasileiro terá como ponto central três desmentidos categóricos: não se pratica tortura no país; não há "desaparecimento" de presos políticos no país; não há ditadura no país.
Bom, mas é lógico, dirá o leitor, que o governo de Jair Bolsonaro não é uma ditadura, não faz "desaparecer" presos políticos, não tortura.
Sim, os parágrafos anteriores resumiram o essencial da política externa do Brasil dos anos 70, a era dourada da ditadura militar que de 1964 a 1985 atormentou os brasileiros.
O que se pretende provar é que essa política não diverge da política do bolsonarismo, expressa com mentiras a rodo em comunicação na ONU no mês passado.
Conforme coluna no jornal Folha de S. Paulo de Roberto Simon, diretor sénior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas por Harvard que há sete anos pesquisa arquivos brasileiros para a redação de um livro sobre a ditadura, o método é o mesmo.
Mesmo perante os factos e as provas, o regime dos generais ditadores negava a tortura e o desaparecimento de presos políticos; mesmo com fotos de satélites e estudos de campo, o regime do capitão eleito desmente o aumento, sob a sua administração, de 210% no número de queimadas no Pantanal, que destruíram 26,5% da área da maior planície alagada do mundo, e os sinais de devastação em 3.069,57 km² da Amazónia, maior floresta tropical da Terra.
Hoje, Bolsonaro odeia a Greenpeace e Leonardo di Caprio; os presidentes brasileiros da ditadura detestavam a Amnistia Internacional e Joan Baez.
Se o Brasil de há 40 anos, acusado de violações consecutivas dos direitos humanos, era um proscrito do Tribunal Internacional dos Crimes de Guerra, o nascido em 2018 foi apelidado de um pária ambiental na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2019, pelas posições anti-indigenistas e anti-ambientalistas.
Mas, claro, ontem como hoje, tudo não passou e não passa de tramas internacionais muito bem orquestradas.
A trama internacional contra a tortura da ditadura militar, entretanto, não acabou com ofensivas de relações públicas; só acabou quando a ditadura militar deixou, de facto, de torturar.
Para acabar com a trama internacional, um conselho ao presidente Bolsonaro: é só não incentivar incendiários, desmatadores e outros criminosos.
Correspondente em São Paulo