Se eu fosse presidente

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Como é que os órgãos de comunicação social fazem para durante uma campanha eleitoral, no meio dos comícios, dos debates, da propaganda, das promessas, dos gráficos, das pesquisas, das sondagens, das fake news e dos grupos imbecis de WhatsApp, arrancar um sorriso enternecido do público?

Há uma fórmula batida mas infalível: perguntar a crianças o que fariam se fossem presidentes.

"Se eu fosse presidente dos Estados Unidos? Não haveria deveres de casa nem à segunda nem à sexta-feira", disse um menino de 8 anos, numa reportagem durante a última eleição presidencial americana. A entrevistadora não resistiu a um "oooohhh, how sweet" no final.

"A minha primeira medida seria criar casas de marshmallows", afirmou outra, gerando um "oooooohhhh" ainda mais prolongado da repórter.

Crianças do Rio de Janeiro ouvidas durante a última campanha também geraram os seus "oooohhh". Como aquele moleque que disse sem pestanejar que "proibiria carros na rua para poder jogar à bola se fosse presidente".

Num outro questionário do mesmo tipo, para uma menina paulista que não gosta de legumes, a prioridade das prioridades no país seria "os alunos poderem escolher os menus das escolas".

As crianças são assim: divertem-nos porque têm uma visão de mundo necessariamente limitada aos seus pequenos gostos, aos seus pequenos desejos, aos seus pequenos temores.

Por isso, não podem ser eleitas de verdade. Precisam de "adultos na sala", a frase que se tornou cliché nos Estados Unidos desde que o meio infantil Donald Trump assumiu a Casa Branca.

No Brasil, que elegeu um fã de Trump (e do pseudofilósofo delirante Olavo de Carvalho e do torturador Carlos Ustra e dos ditadores sul-americanos Pinochet e Stroessner) passa-se mais ou menos o mesmo.

Na economia, a equipa do ultraliberal Paulo Guedes procura avançar com a sua agenda. E, na política, os militares de alta patente tentam dar consistência à amálgama governamental. Se estão certos ou errados é outra conversa - mas são eles os "adultos na sala".

A Bolsonaro cabe aquilo que cabe no seu restrito raio de pensamento.

Por exemplo, zangado por acumular multas de trânsito - não só ele, a primeira-dama Michelle e o filho mais velho Flávio, segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo, até já deviam ter as cartas apreendidas - declarou guerra aos radares e às lombas eletrónicas para devolver aos brasileiros "o prazer de dirigir".

As mortes na estrada tiveram redução de 21,7% nos trechos onde estão localizados os radares. Mas o raciocínio do presidente é mais linear: andar depressa dá prazer, multas não permitem que se ande depressa, logo, acabemos com os radares.

Outro hobby de Bolsonaro é a pesca: em 2012, ainda deputado, foi multado por um fiscal do instituto de proteção ambiental Ibama por estar a pescar numa estação ecológica em Angra dos Reis, Rio de Janeiro.

Resultado: eleito, tratou de despedir esse fiscal, dizimar o Ibama e ainda revogar a proibição da pesca na estação ecológica onde foi multado "para tornar Angra dos Reis uma Cancún".

O presidente, o mundo sabe-o, também gosta de disparar. Vai daí, acompanhado pelo excitadíssimo grupo de deputados pró-armas conhecido como Bancada da Bala de polegar e indicador esticados a fazer o gesto da pistolinha, assinou decreto a permitir que atiradores e colecionadores possam circular de arma carregada por aí. Provavelmente porque daria muito trabalho carregar a arma só dentro do clube de tiro.

Na sequência, facilitou o porte de arma a políticos, advogados, jornalistas, camionistas e um sem-fim de outros setores profissionais num total de cerca de 19 milhões de brasileiros - o dobro da população de Portugal.

Como as crianças, Bolsonaro limita a sua ação aos seus pequenos gostos - acelerar, pescar, atirar. E aos seus pequenos temores: disse que não quer o Brasil conhecido no mundo como paraíso gay - de prostituição feminina não há problema - e vetou um anúncio em que brasileiros de todas as cores apareciam - talvez para o substituir por um com cidadãos de bem, brancos, ricos e de arma no coldre.

Ao contrário das crianças, no entanto, o "oooohhh" que o presidente inspira é de choque e espanto.

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