Direitas diferentes
Considerar que a "democracia iliberal" de Orbán, a polarização radical da América, por Trump e as suas interpretações nacionais, não fazem parte do mesmo espaço que o centro-direita e a direita liberal e conservadora devia ser banal. A divergência, razoável, devia ser sobre como lidar com isso. Pela Europa fora experimentaram-se várias fórmulas, sendo evidente que não há só uma que seja eficaz. Mas a maioria coincide num propósito: neutralizar os radicais. Em Portugal, alguma reação, à direita, à publicação do manifesto "A clareza que defendemos", revelou que há quem não sinta o incómodo dessas companhias. É esse o problema.
Paulatinamente, hesitando entre não ofender o eleitorado republicano e não aderir à degradação da democracia americana, o número de políticos republicanos com responsabilidades que reconhecem a legitimidade da eleição de Joe Biden é crescente (com exceções, algumas manifestamente oportunistas). Não havia, nem houve, notícia de fraudes em larga escala, aldrabice ou manipulação que justifique a recusa do resultado eleitoral. O que aconteceu, e isso é o mais relevante, é que Trump fez com as eleições o mesmo que fez sempre: criou uma verdade ficcional em que de um lado está ele próprio e do outro a esquerda radical. No meio, faz de conta que não está nada. E quem está é acusado de ser traidor e colaboracionista com o "socialismo", que por ali é um insulto. Sem surpresa. Trump foi sempre um presidente que em vez de unir quis partir o país.
Na Europa, a presença de Orbán no Partido Popular Europeu, onde estão a maioria dos partidos de centro-direita estruturantes da democracia europeia, é um embaraço que só tem duas justificações: manter o peso político do (resto do) PPE no seio das instituições europeias, e a convicção de Merkel de que alienar o Leste, mesmo quando radicaliza, é um risco. O desconforto no PPE, porém, é cada vez menos suportável. E o taticismo revela-se pouco útil, como se vê na discussão sobre os fundos europeus. Coisa que se descobriu tarde de mais.
Se nem o Vox, de Santiago Abascal, nem a Liga Norte, de Matteo Salvini, seriam aceites no PPE se pedissem para entrar, o partido húngaro também não devia estar. Mas é muito mais difícil expulsar um intruso já com poder do que negar-lhe a entrada, reduzindo-lhe as possibilidades de o obter.
Se não houvesse razões de fundo, e há, este argumento deveria iluminar a estratégia de como lidar com as franjas radicais (seja à direita seja à esquerda, de resto). Em Portugal, há quem não sinta necessidade dessa lição.
Pode perfeitamente acontecer que, um dia, uma proposta ou mesmo um governo de direita e centro-direita sejam viabilizados com os votos, ou a abstenção, de um partido como o Chega. Não sendo ilegal, seria absurdo que se recusasse essa possibilidade. Mas há uma grande diferença entre condicionar, obrigando a apoiar, e negociar, sendo condicionado por esse apoio. E uma ainda maior em estar cómodo com isso.
A Aliança Democrática de Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Ribeiro Teles uniu monárquicos, liberais, conservadores, democratas cristãos e reformistas. Gente com um propósito comum. Manteve um muro à sua direita e abriu a porta ao centro, contribuindo para a normalização do regime que tinha saído do 25 de Abril. Fazer entrar nesse grupo os que então teriam ficado de fora é um erro. Ver que há quem esteja confortável com isso tem de preocupar, pense-se o que se pensar sobre como lidar com o assunto.
Consultor em assuntos europeus