A partidarização europeia
Sylvie Goulard, a candidata francesa a comissária europeia, foi chumbada pelo Parlamento europeu porque tinha problemas éticos, porque Macron tem vários anticorpos em Bruxelas e porque Ursula von der Leyen, a candidata a presidente da Comissão, não quis defendê-la mais do que o necessário. Essa é parte da explicação. A restante é que esta foi uma decisão dos parlamentares populares e socialistas, apesar ou mesmo ao arrepio das lideranças nacionais. É uma transformação da política europeia em curso.
Não foi Angela Merkel (a líder do maior partido do PPE) ou Pedro Sánchez (o chefe do parido socialista com mais importância na União Europeia) quem disse aos deputados europeus dos seus partidos para recusarem a candidata de Macron. Na melhor das hipóteses, ambos, Merkel e Sánchez, terão tolerado, mas ninguém acredita que terão incentivado ou mesmo apreciado.
Sem estar em causa a legitimidade para o fazerem, é evidente que o facto de os grupos políticos decidirem fazê-lo por iniciativa própria, ainda por cima à candidata francesa (já tinha acontecido com outros mas a França é, de facto, a França e Macron tem querido ser o líder europeu), tem um significado próprio. Pode considerar-se que os deputados não quiseram ficar contaminados com a aprovação de uma comissária eticamente duvidosa, que foi uma vingança do candidato a presidente da Comissão derrotado, Manfred Weber, líder do grupo popular no Parlamento Europeu, e que os socialistas não quiseram ficar isolados. Tudo isso será parte da verdade, mas não explica tudo.
Ao longo de décadas, a construção europeia foi obra de democratas-cristãos e socialistas que, à vez ou em coligação, lideravam os governos nacionais dos principais países europeus. No conselho, onde estão os chefes de Estado e de governo, os dois partidos estiveram sempre sentados e em maioria. No Parlamento Europeu, as maiores delegações de cada grupo político (a expressão parlamentar dos partidos europeus) eram dos partidos do governo ou que habitualmente estavam no governo e refletiam, como normalmente acontece, as principais ideias das respetivas lideranças.
À medida, porém, que o poder do Parlamento Europeu cresceu - é um dos parlamentos com mais poder que existe - e, agora, com o fortalecimento de um terceiro partido que divide o poder (atualmente existem nove governos do PPE, sete socialistas e seis liberais, incluindo França, e os liberais são indispensáveis para formar maiorias lógicas no Parlamento Europeu), as circunstâncias alteraram-se.
Nos parlamentos nacionais, os grupos parlamentares, cujos deputados são igualmente eleitos pelo povo, tendencialmente refletem as lideranças partidárias, eleitas pelos militantes. Em Bruxelas está em desenvolvimento uma fórmula em que o poder dos partidos (pelo menos dos grupos parlamentares) é o que resulta diretamente das eleições europeias e não (ou menos) do poder das lideranças nacionais.
O facto de o Parlamento Europeu ter crescente poder, de ter um método de trabalho que promove a autonomização dos deputados relativamente às lideranças nacionais (que, com frequência, sobretudo se estiverem na oposição, nem acompanham de perto o que está a ser discutido e votado) e de o poder ser cada vez mais distribuído em função do peso dos partidos nas diferentes instituições indicia uma transformação da política europeia onde os partidos europeus, autonomizados das lideranças nacionais, terão crescente poder próprio. É uma nova política europeia, mais partidarizada, parlamentarizada e menos nacional. A Europa que assim se vai fazer vai ser diferente.
Consultor em assuntos europeus