Palavras, palavras, palavras
Ricardo Araújo Pereira queixava-se, há dias, de não poder fazer piada com a palavra "paneleirice" - mesmo no contexto de um copo de gin demasiado enfeitado - sem levar com o protesto de homossexuais mais impressionáveis. O direito de expressão humorística de uns colidindo com o direito de expressão protestante de outros... É um conflito interessante, que levou ao policiamento do falar mais colorido, justificado pela dor que poderia infligir. O resultado é, talvez, ganhar-se em correção social e, certamente, perder-se em língua mais viva. Mas o que me traz aqui não é esse conflito. É ter-me dado conta de que ao tanto cuidado nas palavras-palavras, daquelas que só verbalizam, correspondeu, neste 2016 estrambótico, à irrupção da impunidade das palavra-ações, daquelas que correspondem a factos. Comparem a demasiada importância que se deu à retórica da campanha de Trump - como ele falava (não o que ele fazia) das mulheres, negros e hispanos - com a displicência com que se acolheram os dados, alguns por ele assumidos, sobre as suas ilegalidades financeiras e fiscais. Policiando tanto as palavras puseram-nas no patamar dos factos. E, agora, o presidente filipino Rodrigo Duterte até já pôde dizer publicamente que andou pela cidade a matar. Eu sei, tu sabes, nós sabemos que as palavras não são necessariamente factos, mas se quisermos continuar a fingir que sim, os poderosos já não precisam de mentir: os seus factos são simples palavras.