Isabel e Filipe (não, não esses, mais que esses)

Jean Monnet e Robert Schumann, os fundadores da Europa? Tarde piaram, meio milénio antes já Isabel de Portugal e o marido, Filipe, o Bom, duque da Borgonha, andaram metidos nisso
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Esquecimento injusto. Aproveito uma coincidência de noticiário sobre um Filipe, reformado aos 95 anos, e casado com uma Isabel, para falar de outra Isabel, mulher também de um Filipe. Esta última, portuguesa, pertence à "ínclita geração", termo com uma palavra estranha mas que conhecemos de memória talvez porque cunhado por Camões: "Mas, pera defensão dos Lusitanos,/ Deixou, quem o levou, quem governasse/ E aumentasse a terra mais que dantes:/ Ínclita geração, altos Infantes." Sabemos os nomes deles, os dos infantes. D. Duarte, rei e o do Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela, D. Pedro, o culto, e infeliz na batalha de Alfarrobeira, D. Henrique, o Navegador, D. João, o Condestável, e D. Fernando, o Santo, morto refém entre muçulmanos para guardarmos Ceuta... Cinco irmãos notáveis. Ínclita geração.

Mas D. João I e a inglesa Filipa de Lencastre tiveram mais descendência: Isabel, alta infanta. E se dela talvez não se possa dizer que tivesse aumentado "a terra mais que dantes" - ela não está ligada aos nossos Descobrimentos -, governou. Poderosíssima. Dei por Isabel de Portugal, duquesa de Borgonha, porque andei recentemente por uma região que conhecia pouco, no Leste de França, por outra coincidência de noticiário, as presidenciais francesas. O ducado da Borgonha, estado cristão talvez mais poderoso do seu tempo e certamente o mais refinado e visionário.

Jean Monnet e Robert Schumann, os fundadores da Europa? Tarde piaram, meio milénio antes já Isabel de Portugal e o marido, Filipe, o Bom, duque da Borgonha, andaram metidos nisso. E se ainda não era a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, era por uma união política, a dos reinos de França e de Inglaterra, alicerçada num apetite mais vasto: os Países Baixos, que eram do duque, viriam por arrasto. Com economia sustentada - estou a abusar, copiei o termo do economês atual, mas era mesmo assim: os portos de Antuérpia e Amesterdão preparavam-se para o novo mundo.

O duque, já com dois casamentos mas sem filho varão, andava à procura de princesa do seu patamar - relembro, o ducado medieval apanhava a França Oriental, subia pela margem ocidental do Reno, e entrava pela Flandres e pelo Brabante, o dos tecidos, e ia até aos portos que viriam a ser belgas e holandeses. Filipe ouviu falar da infanta portuguesa, filha de rei, alentejana de Évora temperada com a tez clara das descendentes dos Lancaster ingleses. Então, ele convocou o Jean van Eyck, reputado pintor de então, que a história veio a confirmar como o mais célebre pintor flamengo primitivo, e mandou-o a Lisboa. Hoje, do óleo sobre madeira, que serviu de retrato de noivado, só se conhecem cópias de cópias. Mas o importante é que o duque Filipe, apreciador, ficou encantado com a testa alta e curva, a delicadeza dos lábios e o ar de... de... pertencente a uma ínclita geração (isto adivinhou o duque, sem pronunciar as palavras).

Em 1430, uma esquadra de 39 vasos de guerra, que foi buscar a princesa a Lisboa, levou-a à nova casa e com ela um dote imenso. Em cruzados de ouro e, sobretudo, na arte de bem governar que Isabel, já com 33 anos, trazia de uma corte culta, onde ela, por morte da mãe 15 anos antes, era a senhora. O casamento de Isabel de Portugal e Filipe de Borgonha, nos Países Baixos, foi sumptuoso e também popular. O povo tinha três fontes a derramar vinho de Beaune (ainda hoje, a capital do borgonha). Durante uma semana, festejou-se, banqueteou-se, dançou-se e bebeu-se - o que, através de um presidente holandês do Eurogrupo, nos leva a outra coincidência do noticiário com a História...

Nas últimas duas décadas da Guerra dos Cem Anos - guerra entre os reinos de Inglaterra e de França e guerra civil entre casas nobres francesas -, o duque de Borgonha fazia paço em Lille, Bruxelas e Inglaterra. A nova duquesa ficava em Dijon, na Borgonha, a dirigir o ducado. Filipe aliado da Inglaterra para uma fusão dos reinos, encontrou na mulher, uma Lancaster, aliada natural. Acabava ela de chegar, e o marido comprometeu-se ao entregar Joana d"Arc aos ingleses. Joana d"Arc é uma irmã Lúcia que acabou mal. Camponesa e analfabeta, a Joana aparece-lhe Deus que lhe disse para convencer o rei francês a pôr o exército sob o seu comando. Ela ganha algumas batalhas, mas aos 19 anos acabou por cair nas mãos dos borguinhões que a entregam aos ingleses. Ela será queimada viva, num auto-de-fé, em Ruão.

A causa da união entre os reinos de França e de Inglaterra perde força, a Borgonha apostou cedo na construção da Europa. Em 1435, em Arras, no Norte de França, abrem-se negociações para pôr fim à Guerra dos Cem Anos. Filipe, o Bom, vai acompanhado pela mulher, demonstração da influência da portuguesa na política da Borgonha. O ducado aceita renunciar à união das duas coroas e a força da Borgonha fica com prazo contado. O futuro da França vai fazer-se sem galgar a Mancha e, centralizando-se, conquistando a Borgonha. Carlos, o Temerário, filho de Filipe e de Isabel, vai morrer a combater e a Borgonha vai acabar mera região francesa.

500 anos anos depois de queimada como feiticeira, Joana d"Arc é proclamada santa, em 1920. Já era padroeira de França e do seu exército. Em bronze dourado e armadura que lhe esconde os seios, a Virgem de Orleães, a cavalo e segurando um estandarte, dizem os noticiários desta semana, recebeu a homenagem dos nacionalistas franceses que querem sair da Europa.

Na semana, também, em que a esperança está naqueles que levantam a bandeira de França e a da Europa, juntas. Ninguém, porém, se lembrou de Isabel, alta infanta, grande duquesa, europeia avant la lettre. Como quase sempre, estar certo antes do tempo é um erro.

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