Tudo sobre o escândalo do momento em Matosinhos!
Para o desfile de Carnaval, uma escola de Matosinhos pediu aos alunos (ensino básico) para irem fantasiados de "africanos". Gosto da ideia. As crianças de uma escola de Portugal (ver Wikipédia, "Matosinhos, cidade portuguesa do distrito do Porto"), fantasiando, podem ficar a conhecer gente de outro continente, de onde a maioria das suas crianças, presumo, não é. Conhecer é sempre bom.
Ah, África! De onde veio a arte secular que permitiu Picasso pintar Les Demoiselles D'Avignon, modernizando a arte universal! Ah, África! Que recebeu a farinha de bombó, intragável na comida sul-americana (de onde veio), transformando-a num prato magnífico, como é em Brazzaville e Luanda! É tão bom ver os miúdos da terra das sardinhas enlatadas conhecerem também outras coisas boas pelo mundo fora...
Mas, atenção, o convite da escola explicava a festa com uma palavrinha perigosa. A ideia da escola e de outras do mesmo agrupamento escolar era, escreveu-se, apresentarem várias "raças". Àquela calhou os africanos. Ui, pensei logo, vai dar tuítada brava, seguida do eco habitual nos jornais à tuítada brava ... Raça é uma palavra pestífera.
"Raça?", perguntou o formulário da alfândega a Albert Eisntein quando ele chegou à América. Respondeu o sábio: "Humana." Eu teria respondido: "Mulato com bigode". Eu, que sou (enfim, generalizando) branco e escanhoado, mas foi assim que sempre me quis apresentar: mulato e de bigode. Eu sei que não há raças humanas, somos todos homo sapiens sapiens e os que são mesmo sapiens sapiens, sábios sábios, sabem que somos todos iguais. Mas tenho um fascínio de miúdo pelo senhor Mário Coluna e pelo baiano Dorival Caymmi. Ah, mulato e de bigode! Sem desprimor, claro, por gente como a Marilyn e o Marega.
Mas isso sou eu, caros professores matosinhenses - caros, mesmo, pois gostei do vosso convite aos miúdos -, vocês meteram-se num pequeno sarilho ao dizer "raças". As pessoas, hoje em dia, parecem ter nascido com uma aplicação que põe os dedos a berrar no Twitter (e por extensão e reação, nos jornais) de cada vez que soa: "Malta, borbulhou outra indignação!" Desta vez foi sobre o Carnaval em Matosinhos.
Uma vez, garoto como esses do Carnaval 2019, vindo da minha Luanda, fui levado por um primo ao campo de futebol antigo do Leixões. Era dia de semana e a meio do treino apareceram dois polícias do porto com um rapaz negro, magro e assustado. Tinha sido encontrado no porão de um cargueiro vindo de São Tomé, sem documentos mas, mais prático que Einstein, apresentou-se assim: "Jogo futebol."
Os polícias, armados em Jorge Mendes, levaram-no ao velho campo de Santana, pelado, sonhando ficar com 50 por cento do passe do jogador, pelo qual exigiram duas cervejas. Foi um fiasco. Seja pela fome da travessia marítima, seja pela falta de jeito, o rapaz santomense não fez senão tropeçar na bola. A bancada foi cruel. Gozou e ouvi para nunca mais esquecer este insulto: "Lâmpada fundida!"
Professores de Matosinhos, vocês têm razão, é preciso levar as crianças a conhecer os outros. Mas deviam ter dito para se fantasiarem de melanoderma, isso na escola que os queria africanos, de xantoderma, na escola que os queria asiáticos e leucoderma na que os queria europeus.
A pedagogia, mesmo sobre assuntos epidérmicos, às vezes precisa de não ficar pela rama. E já dou de barato a generalização de os africanos serem todos negros. Os pais do Zidane não são negros, são berberes da Argélia e portanto africanos; os bosquímanos da Namíbia são evidentemente africanos e, menos evidente, não são negros; e a princesa Charlene, do Mónaco e loura, é africana, porque do Zimbabué.
Em todo o caso, é positivo o essencial da ideia de pôr os miúdos da escola a mascararem-se de africanos. Imitar os outros para os humilhar é mau, mas manifestamente não foi esse o convite da escola (o tema, quando foi mais bem explicado, dizia: Culturas do Mundo). Então, propôs-se aos miúdos fazerem-se passar pelo outro, fazerem de conta que eram o outro. Uma sã curiosidade pelo outro é sempre uma homenagem. Aquele cortejo pôde ter sido a primeira ocasião para uma menina branca se achar bonita vestida com uma capulana. Talvez tenha havido crianças de cabelo liso a darem-se conta, com uma peruca, que uma carapinha também é linda para enquadrar a cara...
Talvez um garoto sardento com são tantos netos de mestres de traineira tenha posto uma camisa estampada e maravilhosa, igual às que usava aquele presidente sul-africano, ai, como se chamava?... Mandela! Que belo pretexto para uma turma passar cinco minutos de um cortejo carnavalesco a ouvir falar e perguntar muito sobre o maior super-herói que os seus pais e avós ouviram falar... E esse Nelson Mandela era bonito como o Danilo? Mais, muito mais, e elegante e reinava na grande área, no meio campo, no campo inteiro, como nunca houve outro rei no nosso tempo...
Eis como uma boa proposta, não muito imaginativa e com errozitos de pormenor, poderia ter espicaçado a mais útil das qualidades infantis, a curiosidade. Foi assim, não foi? Não vamos saber. O cortejo carnavalesco foi mascarado e sequestrado pelos profissionais da indignação. Como quase sempre, emprenharam pelo ouvido, por uma névoa vinda lá de fora, o blackface... Atiram-nos a palavra à cara e a coisa fica preta. Blackface, o horror, o horror...Não perguntem porquê, porque ficam com cara dos que pintam a cara de preto. O horror, o horror...
Mais uma vez o pretexto para a indignação foi um deslize escrito no convite da fantasia: "Cara pintada." A maneira mais fácil de uma pessoa que não é negra parecer um negro é pintar a cara de negro. É, mas tem um custo: o blackface entrar a galope na discussão. Durante séculos (XVIII, XIX e XX), os palcos estiveram proibidos aos negros, mas não às caras pintadas de negro. Em Inglaterra e nos Estados Unidos foi mesmo um género musical, o blackface, cara pintada de negro, olhos de espanto e lábios grossos pintados de vermelho ou branco, boa música (mimando a boa música que eles, os que não podiam subir ao palco, tocavam)... Quase sempre o género roçava o racismo, generalizando o ridículo e sublinhando a caricatura.
O primeiro filme sonoro, O Cantor de Jazz (1927), é protagonizado por Al Jonson, um judeu lituano com a cara pintada de negro. Em 1903, na primeira versão filmada de A Cabana do Pai Tomás (adaptação do livro generoso que ajudou a América a rejeitar a escravatura), meio século depois de ter sido escrito por de Harriet Beecher Stowe, a maioria dos negros foi representada por atores brancos de cara pintada... Essa a história do blackface, cheia de ironia e maldade. História humana, enfim. Sabem que Orson Welles, fingindo-se Otelo, fez blackface? E Judie Garland, amiguinha de espantalhos falantes, bonecos de lata e leões, fez blackface?
E, então, pintar a cara de negro numa fantasia de um Carnaval de 2019 é necessariamente reatar o racismo dos que subiam ao palco para gozar com os negros que não podiam subir ao palco? Seria, seria, se estivéssemos agrilhoados para sempre aos pecados do passado. Mafalda, a ruivinha da escola de Matosinhos, se tivesse de responder pelas erros de todos os filmes de Hollywood feitos até há pouquinho, meia dúzia de anos, nunca daria um beijinho ao Afonso, branquelas como ela.
É que dar beijos só entre casal leucoderma (tal como só entre casal melanoderma) foi até há pouco tempo norma exclusiva nos ecrãs. Por causa disso, em Dossier Pelicano, filme de 1993, a branca Julia Roberts e o negro Denzel Washington nunca passam aos finalmentes (como acontece no livro de John Grisham, que inspirou filme), apesar de vermos toda a vontadinha de ambos, da branca e do negro.
Em versão mais soft, a Mafalda e o Afonso, de oito anos, vão ser obrigados a esquecer o seu amorzinho, não vá serem confundidos com as normas estúpidas do passado que impunham afagos só entre os com a mesma dose de melanina? Nota final para a esquadrilha da indignação: não vale a pena fazerem uma campanha contra os garotos, mudei-lhes os nomes e eles até não são de Matosinhos.