Ilse Lieblich chegou à sua nova cidade em 1934, desembarcando na Alfândega do Porto, tão-só alfândega e porto, ainda não o soberbo centro de congressos na margem nortenha do Douro. O irmão Fritz foi buscá-la e é pena que nenhum cineasta tivesse levado máquina e tripé para o miradouro da serra do Pilar, na margem fronteira, e focasse a objetiva no casal de irmãos entrando pela Ribeira, Porto acima. É pena, porque do mesmo miradouro, cuidando que a objetiva se esquivasse dos raros prédios modernos, seria hoje possível manterem-se as mesmas imagens do casario de granito da Ribeira, da Sé de paredes brancas e janelas debruadas também a pedra, do espreitar da Torre dos Clérigos, da luz molhada do Porto... Tanto tempo passado e uma mesma cidade..Em 1990, para o jornal Público, mais de meio século desde aquele desembarque, fui ao Porto falar com Ilse Losa (ela casou-se com o arquiteto portuense Arménio Taveira Losa, no ano seguinte a chegar). Uma escritora com a memória vívida do século. Em 1934, Adolfo Hitler tornou-se chefe de Estado e da Alemanha fez um pesadelo. Antes de muitos, Ilse adivinhou-se uma precoce refugiada judia alemã. O acaso de ter um irmão já estabelecido em Portugal, e que se casara com uma bracarense, talvez tivesse decidido o exílio mais cedo - em 1934, o mundo ainda adiava a realidade que rapidamente se tornaria desenfreada. Quando lhe falei daquele dia em que encontrou a salvação, certamente ainda sem o saber quanto, Ilse Losa recordou-se do que mais a impressionara: "Os pés nus. Não só dos garotos mas de muitos homens e mulheres.".Portugal e o Porto eram também um mundo estranho. A ditadura de Salazar instalava-se. Na cidade festejava-se a 1.ª Exposição Colonial, com sobas guinéus e negras de panos vistosos e seios nus expostos nos jardins e pirogas a vogarem nos canais do Palácio de Cristal - sob a organização do capitão Henrique Galvão, futuro inimigo da ditadura (e do sequestro do navio Santa Maria). Entretanto, a alemãzinha Ilse, no começo dos seus 20 anos, fazia escândalo ao sentar-se sozinha nos cafés da Baixa portuense, na Praça D. Pedro IV (em homenagem ao libertador da maior colónia portuguesa, o Brasil)..No fim da II Guerra Mundial, e do pior que se soube dela, Ilse Losa (1913, Buer, Alemanha-2006, Porto) escreveu o seu primeiro romance, O Mundo em Que Vivi - uma vontade de se contar até chegar a um porto de abrigo. A criança judia que viveu com os seus avós, numa aldeia da Baixa Saxónia, a adolescente que conheceu a irrupção do nazismo e as botas da Gestapo, em Hanôver, a jovem que partiu e se salvou... No princípio da década de 1960, ela escreveu o romance Sob Céus Estranhos e fez, como disse então o crítico Alexandre Pinheiro Torres, "o mais perfeito retrato da cidade do Porto nos anos 40, para não dizer o único retrato"..Hesitando em voltar a ver o seu país, Ilse deixou-se convencer pelo marido. Em 1952, foram ambos de visita à pequena vila de Buer, na Baixa Saxónia, onde ela passara a infância. Uma mulher reconheceu-a, fora sua coleguinha de escola. A alemã abraçou-a e disse-lhe, a chorar: "Ilse, não sabes como sofremos durante a guerra." A Ilse judia, de facto, não sabia - tinha chegado ao Porto antes da guerra, em 1934. O que ela sabia é que todos os seus na Alemanha tinham desaparecido, só um tio voltara de um campo de concentração. O casal portuense regressou à sua cidade.
Ilse Lieblich chegou à sua nova cidade em 1934, desembarcando na Alfândega do Porto, tão-só alfândega e porto, ainda não o soberbo centro de congressos na margem nortenha do Douro. O irmão Fritz foi buscá-la e é pena que nenhum cineasta tivesse levado máquina e tripé para o miradouro da serra do Pilar, na margem fronteira, e focasse a objetiva no casal de irmãos entrando pela Ribeira, Porto acima. É pena, porque do mesmo miradouro, cuidando que a objetiva se esquivasse dos raros prédios modernos, seria hoje possível manterem-se as mesmas imagens do casario de granito da Ribeira, da Sé de paredes brancas e janelas debruadas também a pedra, do espreitar da Torre dos Clérigos, da luz molhada do Porto... Tanto tempo passado e uma mesma cidade..Em 1990, para o jornal Público, mais de meio século desde aquele desembarque, fui ao Porto falar com Ilse Losa (ela casou-se com o arquiteto portuense Arménio Taveira Losa, no ano seguinte a chegar). Uma escritora com a memória vívida do século. Em 1934, Adolfo Hitler tornou-se chefe de Estado e da Alemanha fez um pesadelo. Antes de muitos, Ilse adivinhou-se uma precoce refugiada judia alemã. O acaso de ter um irmão já estabelecido em Portugal, e que se casara com uma bracarense, talvez tivesse decidido o exílio mais cedo - em 1934, o mundo ainda adiava a realidade que rapidamente se tornaria desenfreada. Quando lhe falei daquele dia em que encontrou a salvação, certamente ainda sem o saber quanto, Ilse Losa recordou-se do que mais a impressionara: "Os pés nus. Não só dos garotos mas de muitos homens e mulheres.".Portugal e o Porto eram também um mundo estranho. A ditadura de Salazar instalava-se. Na cidade festejava-se a 1.ª Exposição Colonial, com sobas guinéus e negras de panos vistosos e seios nus expostos nos jardins e pirogas a vogarem nos canais do Palácio de Cristal - sob a organização do capitão Henrique Galvão, futuro inimigo da ditadura (e do sequestro do navio Santa Maria). Entretanto, a alemãzinha Ilse, no começo dos seus 20 anos, fazia escândalo ao sentar-se sozinha nos cafés da Baixa portuense, na Praça D. Pedro IV (em homenagem ao libertador da maior colónia portuguesa, o Brasil)..No fim da II Guerra Mundial, e do pior que se soube dela, Ilse Losa (1913, Buer, Alemanha-2006, Porto) escreveu o seu primeiro romance, O Mundo em Que Vivi - uma vontade de se contar até chegar a um porto de abrigo. A criança judia que viveu com os seus avós, numa aldeia da Baixa Saxónia, a adolescente que conheceu a irrupção do nazismo e as botas da Gestapo, em Hanôver, a jovem que partiu e se salvou... No princípio da década de 1960, ela escreveu o romance Sob Céus Estranhos e fez, como disse então o crítico Alexandre Pinheiro Torres, "o mais perfeito retrato da cidade do Porto nos anos 40, para não dizer o único retrato"..Hesitando em voltar a ver o seu país, Ilse deixou-se convencer pelo marido. Em 1952, foram ambos de visita à pequena vila de Buer, na Baixa Saxónia, onde ela passara a infância. Uma mulher reconheceu-a, fora sua coleguinha de escola. A alemã abraçou-a e disse-lhe, a chorar: "Ilse, não sabes como sofremos durante a guerra." A Ilse judia, de facto, não sabia - tinha chegado ao Porto antes da guerra, em 1934. O que ela sabia é que todos os seus na Alemanha tinham desaparecido, só um tio voltara de um campo de concentração. O casal portuense regressou à sua cidade.