Fomos visitados por um profeta e não o ouvimos

O Nobel da Literatura (2001) V.S. Naipaul esteve em Óbidos, no Folio, um festival literário este ano dedicado à utopia. O escritor caribenho é de origem indiana, os avós foram de Calcutá para Trinidad, no mesmo século e para os mesmos campos de açúcar dos nossos madeirenses. Aos 84 anos, ele está ainda mais zangado do que sempre foi, qualidade quase tão famosa como a sua grande escrita. Foi entrevistado em Óbidos e perguntaram-lhe sobre o que pensava da utopia. O homem zangado respondeu com a voz quase inaudível: "Utopia nunca significou nada. Essa ideia de pessoas terem importantes visões, que desfazem o mundo... Não acho que precisemos de visões que desfaçam o mundo. Precisamos de visões que reforcem o afeto que temos pelo mundo como ele é."

Estavam a pedi-las, a falar-lhe de questões bizantinas... Ou istambulianas, ou constantinoplianas, ou quaisquer outras sobre o sexo dos anjos, quando a cidade está sitiada. V.S. Naipaul é, entre os grandes escritores, o mais lúcido e amargo sobre a atual grande questão mundial. Bem, mundial talvez não seja, pois ainda temos os russos, os chineses e os indianos que nos dão alguma esperança - mas certamente ela é "a" grande questão europeia. Porque a Europa está fraca e cercada pelo inimigo: o islamismo. Então, apanham o homem em cadeira de rodas e voz partida e perguntam-lhe: e a utopia, V.S. Naipaul, a utopia como vai? Sempre lúcido e amargo, o velho homem mandou passear o nosso eterno gosto por jardins celestes. Foi um grande escândalo, o desprezo dele pela nossa desatenção aos factos, ao mundo e às gentes.

Ainda no ano passado ele escreveu sobre o diabo que nos cerca e rói: "O islamismo é mais simples. Há regras para obedecer, uma jihad para lutar contra a civilização que não podes compreender, um céu para ir quando te tornas mártir e, agora, uma real força combatente no mundo [o ISIS] à qual te podes juntar para simplificar e resolver a tua existência: nenhuma História para complicar a tua consciência, nenhuma arte para te distrair, nenhuma ambivalência, nem as escolhas que o Ocidente te oferece, nenhuma dúvida sobre as vantagens do martírio, nenhuma pertença ao país onde foste criado e que te deu a educação livre, e talvez benefícios sociais. Uma arma, uma reza só meio-entendida, e essa simplicidade que é tudo que um básico deseja..." Escreveu Naipaul. E, no ano seguinte, depois dos atentados em Paris (Bataclan), Nice, Bruxelas - enfim, distopias, aqui e agora - queriam que ele falasse em jardins do paraíso!

Horas antes da entrevista de Naipaul em Óbidos, a mesquita de Psirri, bairro de Atenas, pelos seus altifalantes, gritava para as ruas o apelo à oração islâmica do fim da tarde. Do outro lado do mar Egeu, em Izmir, na antiga Esmirma grega, a histórica Igreja Arménia Gregoriana acabou de ser transformada em estábulo para guardar burros e vacas. E Izmir é na Turquia, que não é, pelo menos ainda não totalmente, salafista como os donos de Meca e o ISIS.

Quando Naipaul chegou a Portugal, aos nossos quiosques chegava a edição semanal da revista francesa Le Point. Na última página, a habitual crónica de Kamel Daoud, o escritor argelino que ainda vive em Orão - ainda, porque uma fatwa o ameaça de morte -, falava sobre a condenação a três anos de prisão de um seu compatriota por "ofensas ao Profeta". Certamente Daoud também não gostaria de falar de utopias, quando ele tem coisas concretas entre mãos, como essa prisão de um homem por causa da sua opinião sobre a imagem de um mito. E ele juntava essa "miopia ao sul" (na Argélia) com a do "norte" (em França) que discute o burquíni como uma questão de direito, de identidade, de comunidade.

Meses antes do verão - e da intenção provocadora de pôr o burquíni a surfar num debate sobre liberdade - Kamel Daoud (insisto, guardem-lhe o nome, porque vão voltar a ouvi-lo como má notícia) publicou no New York Times o artigo "A Miséria Sexual do Mundo Árabe". Já em fevereiro, pois, Daoud lembrava que na Argélia - que, como a Turquia, não é ainda totalmente salafista como o ISIS - os imãs predicadores na TV passam o tempo a lembrar às mulheres que elas não são donas do seu corpo. Ora, Kamel Daoud escreveu então, no NYT e sobre a Argélia, o que viria a acontecer seis meses depois nas praias francesas: "Na praia, o burquíni ataca o biquíni." Porque o próprio da Europa é meter em piloto automático o pescoço de avestruz quando irrompe a tal questão, o islamismo, não nos lembrámos de que tínhamos sido já prevenidos, e do burquíni fizemos uma falsa discussão sobre liberdades.

Se calhar era útil lembrar outras passagens desse antigo artigo de Daoud. Escreveu ele também que as prédicas religiosas nas televisões do mundo árabe "atingem formas tão monstruosas, que caem por vezes num pornoislaminismo". Há autoridades religiosas que emitem fatwas grotescas como a das mulheres não poderem tocar em bananas... Não, na Europa ainda não há imãs a dizerem isso. A questão é haver cidadãos europeus que não se importam de contrariar os costumes fundamentais do seu país - como a igualdade das mulheres - em nome duma identidade que os devora e ilude. Cidadãos "sem pertença ao país" onde foram criados, como diz o grande V.S. Naipaul.

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