Espanha é uma matriosca infinita
Para ser imparcial, confirmei que a notícia que se segue é a mesma nos jornais El País, de Madrid, e La Vanguardia, de Barcelona, e saiu na Reuters, agência de notícias londrina. Uma comarca catalã dos Pirenéus, encravada nas montanhas e dedicada a desportos de inverno na fronteira de Espanha com França, ameaça fazer uma avalanche de votações sobre os destinos pátrios. Dizem os jornais que o pequeno Vale de Aran, dez mil habitantes, fará um referendo sobre o que escolher caso a Catalunha se torne independente. E o resultado dirá provavelmente que quer continuar a ser espanhol. No referendo de 1 de outubro, promovido por Barcelona, só 24% dos habitantes de Aran votaram, cerca de metade da participação do resto da Catalunha. E a esmagadora maioria, 84%, rechaçou, então, a independência catalã.
Logo, se a Catalunha avançar mesmo para a independência, Vale de Aran deve decidir ficar ligado a Madrid. No Vale de Aran a língua mais falada é o castelhano, seguido do aranês (dialeto da língua occitana falada no vizinho Sul de França) e, em terceiro lugar, o catalão. A capital da comarca chama-se Vielha e Mijaran, em aranês. E os do Vale de Aran devem considerar que essas especificidades tão interessantes ficam mais bem defendidas se continuarem encostados a uma velha capital, Madrid, já convencida de que é melhor respeitar as minorias. Partir para a aventura com a Catalunha é arriscar levar com a soberba das novas pátrias.
Pequenino, embora por alturas que às vezes roçam os 3000 metros, o Vale de Aran pode vir a ser, então, uma metáfora de não se sabe ainda bem o quê, mas que pode tornar-se uma sucessão de episódios esquisitos. Referendo seguido de referendo, divisão seguida de divisão... Votações em moto-contínuo. Quando para, se é que para? Desta vez não me socorro dos jornais para colher as notícias, ponho-me à escuta com estas que os franceses chamam "portugaises ensablées".
As portuguesas tapadas... Vocês sabem, um dia um navio português com carga de ostras naufragou na foz do rio Garona, em Bordéus, e as ostras de Setúbal deram-se bem na nova casa. As ostras, em francês, passaram a ser conhecidas por "portugaises", portuguesas. E, como a forma das ostras se assemelha a orelhas, um escritor de livros policiais e cenários de filmes populares lançou uma frase de interrogatório em esquadra: "Olha lá, tens as portuguesas tapadas?"
Tudo a ver com o que eu estava dizendo porque o rio Garona nasce no Vale de Aran e desce os Pirenéus, antes de desaguar em Bordéus e encontrar ostras. A partir de agora não cito jornais, continuo esta crónica com as minhas "portugaises ensablées", virado para dentro, e inventando até onde pode vir a dar o referendo seguido de referendo, a divisão seguida de divisão... Vamos, então, por uma história de bonecas russas, matrioscas... Tirada de uma grande boneca, Espanha, sai uma mais pequena, Catalunha... Desta sai uma boneca mais pequena, Vale de Aran... E assim por diante...
Quis, então, o presidente Carles Puigdemont fazer um referendo na Catalunha e declarar a independência. Feito aquilo e declarada esta, os 13 membros do Conselho Geral de Arão, representantes dos nove municípios da comarca, decidem um referendo: "O Vale de Aran acompanha a independência da Catalunha?" Ganha o não e os araneses continuam espanhóis. Mas na capital Vielha e Mijaran, a alcaide decide ir por fora do penico geral e realiza novo referendo: "Quer Vielha e Mijaran continuar catalã?" E o referendo revela que a vontade soberana da maioria dos seus 5479 habitantes vota ao contrário da maioria dos 9930 habitantes do Vale de Aran: vira as costas a Madrid e é pela independência catalã.
Chegados aqui, recapitulo, a boneca representativa de Vielha e Mijaran está vestida de vermelho e amarelo, da bandeira catalã, la Senyera, tão oposta à bandeira espanhola, la Rojigualda, amarela e vermelha. Confirma--se que Vielha e Mijaran, bem no topo norte da comarca, atravessada pelo Garona, sente-se biologicamente mais francesa do que dos norte-africanos castelhanos e aparentados.
Fronteiras, enfim, definidas? Homens de pouca fé referendária! A capital da comarca bem pode ter-se bandeado para a Catalunha, mas há uma parte da cidade, o restaurante La Abuela, na Avenida Castiero, onde pulsa ainda a alma castelhana. O dono Béltran de La Cueva nunca se cansa de contar que na Feria de San Isidro, em 1965, carregou Manuel Benitez "El Cordobés" na saída em ombros pela Puerta Grande da Monumental de Las Ventas, Madrid. E ele desvanece-se de cada vez que sua esposa, doña Dolores, pelas festas da Semana Santa da sua Sevilha natal, honra o restaurante aparecendo de traje de flamenca.
Ia lá o señor Béltran de La Cueva permitir-se que o seu território, o restaurante La Abuela, na Avenida Castiero, n.º 5, baixasse a cerviz a Barcelona que acabou com festa brava! Béltran faz um referendo local entre patrões e empregados e, só com um voto contra, ganhou: aquele território pátrio continuará súbdito de Madrid, la Rojigualda hasteada à porta e uma cabeça de touro empalhada na sala.
O voto contra foi da cozinheira Beatriu, que engalinhava por a patroa lhe chamar Beatriz. Ela perdeu o referendo do restaurante, mas da cozinha para dentro, onde era a solitária dona e senhora, havia posters do Piqué e Beatriu falava consigo própria em catalão. Enfim, a derradeira fronteira das secessões e independências, chegámos à mais pequena das matrioscas?
Errado... Beatriu estava grávida e de cada vez que ela dizia "potse" (talvez), o bebé dava um pontapé. "Quizas" ele já fosse espanholito por referendo prematuro.