Soares
Não, não é perfeito, sim, cometeu erros, sim, alguns talvez difíceis de perdoar, e tudo isso é história, matéria para debate e estudo. Porque vivemos numa democracia, podemos e devemos falar disso tudo, terçar as nossas razões e emoções. Mas é sobretudo a ele, à sua coragem, instinto e decisões que o devemos.
Mário Soares e o meu pai nasceram no mesmo ano, com dois dias de intervalo. O meu pai adorava-o; desde as primeiras eleições livres votou PS, muito por causa dele, e nunca, até morrer, em 2006, mudou o seu voto. Não fui tão entusiasta, assumo, talvez também por ser da praxe discordar dos pais: durante muito tempo vi muito mais os defeitos, e ele tem muitos - da altivez aristocrática, à qual até se pode achar graça, a um insuportável machismo (lembrar por exemplo que chamou "dona de casa" à sua opositora na corrida à presidência do parlamento europeu, em 1999), entre outros - que as qualidades. Na fase que quase todos os miúdos têm de rejeição "dos políticos" e "da política" - e eu tive-a - foi para mim o símbolo disso com que nada queria ter a ver.
Nunca me foi indiferente, porém, nem deixei de admirar-lhe a tão clara alegria na contenda política - tão óbvia nos debates e nas intervenções que revisitamos nas TV -, como a deslumbrante energia que o levou a dinamizar os encontros das esquerdas nos anos de Passos e da troika, encontros não negligenciáveis quando se fizer a história do processo que levou à atual solução governativa (e como fica mal a alguns a tentativa de fazer crer que seria contra e que o seu silêncio do último ano a tal se deve).
Como admirei depois, ao conhecê-lo, o humor e gosto (sem bravata, curioso) com que contava episódios da sua longa vida política - nomeadamente, e porque sabia que o assunto me interessava, as negociações com o Vaticano a propósito da aprovação da primeira lei que em Portugal legalizou alguns casos de interrupção da gravidez, em 1984, e de como aquele trocou as voltas à cúpula católica nacional, dando o seu OK (apesar da admirável definição pública como "laico, republicano e socialista", Soares sempre foi muito respeitador das autoridades eclesiásticas, imputando-lhes muito mais poder do que aquele que efetivamente detêm, num trauma da Primeira República que parece continuar a tolher a maioria do espectro partidário português).
Mas, é verdade, precisei de muito tempo para perceber a importância deste homem - para o meu país como para mim. Precisei de muito tempo para o perceber, como o de que precisamos para perceber os nossos pais e lhes fazer justiça - o tempo que levamos, caramba, para os ver inteiros, como pessoas, não como funções (e cito Elena Ferrante). Não, não é perfeito, sim, cometeu erros, sim, alguns talvez difíceis de perdoar, e tudo isso é história, matéria para debate e estudo. Porque vivemos numa democracia, podemos e devemos falar disso tudo, terçar as nossas razões e emoções. Há porém algo que nenhum de nós, sob pena de desonestidade, pode negar: é sobretudo a ele, à sua coragem, instinto e decisões que o devemos. Se há um pai da democracia portuguesa é ele. Já estamos suficientemente crescidos para o reconhecer e agradecer. Obrigada (e ao meu pai, que tinha razão).