Por que dizem que você está morta?
Eram duas da manhã cá, 11 no Rio, quando um tuite sobre o homicídio de uma política brasileira me levou à conta dela de Twitter. "Marielle Franco é mulher negra, cria da Maré e defensora dos Direitos Humanos.", diz o perfil. "É socióloga e vereadora da Câmara do Rio de Janeiro pelo PSOL."
Esta mulher de quem nunca ouvira falar escrevera duas horas antes o último tuite, em direto de um encontro de ativistas negras, num tom de alegria, força, coragem. O tom dela, percebi depois quando a vi falar. No dia anterior, terça, escrevera sobre a morte de um jovem baleado à saída da igreja: "Mais um homicídio que pode entrar para a conta da PM [Polícia Militar]. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?" Antes chamara a uma unidade da PM "batalhão da morte."
Quantos mais. Marielle, nascida há 38 anos, eleita em 2016 na lista do Partido Socialismo e Liberdade (fundado em 2004 por dissidentes do PT) com uma votação histórica para uma estreante negra da favela, fora nomeada relatora da comissão camarária que fiscaliza o controlo pelo exército do estado do Rio, imposto por Temer por todo este ano -- uma ocupação militar inédita desde o fim da ditadura. Começara a sua cruzada contra a violência -- e a carreira política -- quando em 2005 uma amiga foi morta por uma bala perdida num confronto entre polícias e traficantes na Maré. Já as balas que a mataram - quatro, na cabeça, disparadas de um carro sobre aquele em que seguia - não se perderam. Foram pelo menos nove tiros, que mataram também o motorista, Anderson Gomes (a assessora, que ia no banco de trás, foi poupada). Até a polícia fala em execução "por quem sabe o que faz".
O Brasil é violento, o Rio é violento; certo. Mas uma política esquerdista feminista negra favelada bissexual (casada com uma mulher, assim se definia), ativista contra a violência de Estado: que jackpot do ódio para a direita bolsonariana. É cedo para dizer, para acusar? OK. Se algum dia se souber - não por acaso, até a ONU pediu uma investigação rigorosa. Mas enquanto esperamos, podemos dizer o que parece. E o que parece é um atentado. Terrorismo.
É aliás como tal que a morte de Marielle está a ser sentida pelos seus - as feministas, os negros, os LGBT, os pobres, a esquerda. Como um ato de terror. Como a passagem para um outro patamar, a evidência da distopia -- uma impossibilidade tornada real.
"Por que dizem que você está morta?", pergunta uma mulher nas respostas ao último tuite de Marielle. Como quem implora que não seja verdade, que o Brasil não é, não se está a tornar isto.