O vizinho do cão da Rua de São Mamede

"Se o amor for desterrado das cidades, a natureza benéfica das cidades transforma-se em natureza maléfica", diz Ferrante em A Amiga Genial. Mas não é, diria, uma questão de mudança de natureza, mas de identidade: o que é uma cidade sem amor?

A primeira vez foi em setembro de 2014. Dizia olá vizinha, bom dia. Não tenho nada de interessante para lhe dizer, somente que sou seu vizinho, moro na Rua de São Mamede, passeio o meu cão na sua rua. Anda sempre com cara triste. Um beijinho de bom dia. Tinha pontos de exclamação e não gosto de pontos de exclamação. Também não gostei da ideia de ter cara triste e a de ser observada perturbou-me: as janelas dos prédios em frente e as pessoas que via nas varandas a fumar, a conversar, a tomar banhos de sol, a olhar o Tejo, eram uma projeção da minha cinematografia lisboeta, para serem vistas e não para me verem: eu era sujeito daquela paisagem. Confrontar-me com alguém que me dizia eu vejo-te, decifro-te e inscrevi-te na minha história fazia de mim atriz de um drama desconhecido. Exigia-me algo - ação, sentimento, o esforço de entrar numa narrativa talvez perturbadora.

Não respondi. Dois dias depois enviou-me uma música dos Dead Can Dance. Talvez quisesse dizer: se os mortos podem dançar, por que não os tristes. Continuei a não responder.

Cinco meses depois, boa tarde vizinha. Eu: ? Ele: isto assim fica descontextualizado. Só há algum tempo reparei que éramos vizinhos, obviamente não existe nada de extraordinário nisto. Agora não consigo explicar tudo outra vez. Mas lembrei-me porque ontem o meu cão, um buldogue-francês chamado Thor, tentou entrar atrás de si no seu prédio.

Lembrava-me do cão: cara apalhaçada, preto e branco, pernas tortas. Tinha falado com ele, o cão. Perguntei a idade (do cão). Quase 6 anos, o que não é mau, respondeu. Não é habitual viverem para além dos 8. Mas também nenhum cão que tenha algum juízo quer viver mais do que isso. Ao fim de oito anos já fez tudo o que havia de ter feito.

Explicou-me que tinha de trazer Thor à minha rua porque só ali, nos pilaretes do meu passeio, queria fazer chichi; na rua dele recusava-se. Ri. Passámos para o tu. Mandou mais músicas, sugestões de livros, filmes, séries. Histórias da filha de 4 anos que todos os dias perguntava se era uma princesa viking (a mãe dele é dinamarquesa) e do que seria o mundo dela. Falou-me da nova bebé, nascida em 2016. Contou-me que tinha entrado para Filosofia e fugido a meio, trabalhado aqui e ali e que detestava o que fazia: basicamente detesto tudo desde que nasci.

"Se o amor for desterrado das cidades, a natureza benéfica das cidades transforma-se em natureza maléfica", diz Ferrante. Mas que coisa é uma cidade sem amor?

Era sobretudo ele a falar. Respondia na medida necessária para que não sentisse que eu não estava ali, que não o lia, que não queria saber. Havia um carácter conceptual, teórico, nas nossas trocas, como se estivéssemos a trabalhar no guião de um filme. Na verdade, de um documentário: um documentário sobre a forma como nos ligamos com os outros, sobre a ideia de vizinhança, de cruzamento, de como temos para cada pessoa de que nos apercebemos uma personagem desenhada por nós, e de vez em quando sentimos a necessidade de lha dizer, de testar a nossa ficção.

Um dia escreveu: também pode surgir a dúvida por que te escrevo. Não tenho qualquer resposta. Poderia inventar. Sinceramente não sei e se soubesse não tinha qualquer piada.

Às vezes encontrávamo-nos; reconhecia-o pelo cão. Ficava sempre surpreendida: és tu? Sorria e fugia. Não sabia falar socialmente com alguém que pertencia a outra dimensão. Talvez fosse cruel, mas parecia-me que atravessar a fronteira para fora daqueles bilhetes digitais seria uma perda, ou um risco que não me sentia capaz de correr. Que as nossas trocas deveriam permanecer no domínio da literatura.

"Se o amor for desterrado das cidades, a natureza benéfica das cidades transforma-se em natureza maléfica", diz Elena Ferrante em A Amiga Genial. Mas não é, diria, uma questão de mudança de natureza, mas de identidade: o que é uma cidade sem amor, ou, o que é o mesmo, sem a ficção do amor?

Há meses que não o via nem recebia os seus bilhetes. Nunca mais, confesso, tinha pensado no rapaz meio dinamarquês e no seu cão trôpego. No Santo António, mandou-me uma mensagem. Olá ex-vizinha. Já não moramos aí. Venderam o prédio e como sabes o mercado de arrendamento morreu. Vim com as miúdas para Mafra. Trinta anos de Santa Engrácia e dez de Madalena. Agora já não pertenço a lado nenhum. Sê feliz, respondi. Ele: elas hão de ser.

E pronto. Nada de extraordinário nisto. O meu bairro perdeu mais uma família. E eu alguém que velava por mim sem eu dar por isso. Como fazem os anjos. Como faz uma cidade.

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG