O belíssimo direito de resistir

Dizer a polícias "tirem-me as algemas, seus filhos da puta" pode não ser crime, diz o Tribunal da Relação de Lisboa; pode ser direito de resistência. Há acórdãos que me reconciliam com a justiça.
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Imagine que se dirige a casa, ao fim de um dia de trabalho, já depois da meia-noite, e, do nada, um carro da polícia atravessa-se no seu caminho, dele saindo dois agentes que lhe perguntam o que faz ali e se traz consigo armas ou estupefacientes. O que faz? Melhor perguntado: o que pode e deve fazer?

A maioria das pessoas não saberá responder a essa pergunta. A pessoa desta história não sabia; foi pois revistada sem levantar problemas e, de seguida - não deveria ter sido ao contrário? -, pediram-lhe a identificação. A pessoa, que também não sabia em que circunstâncias isso lhe podia ser exigido, não tinha consigo o CC, só o passe social (coisa que, tendo-a revistado, os polícias sabiam). Retorquiram-lhe os agentes que tinha de ser conduzida à esquadra; a pessoa disse que não ia, que morava mesmo ali e tinha o CC em casa, ia buscá-lo com eles. Tendo começado por concordar, os polícias mudaram de ideias e resolveram levá-la para a esquadra; como a pessoa resistisse, contorcendo-se e esbracejando, agrediram-na com socos e pontapés e mandaram-na ao chão. A pessoa, no meio da refrega, terá mordido um dos agentes e, já na esquadra, dito: "Tirem-me as algemas de uma vez por todas, seus filhos da puta."

Fácil adivinhar o que se segue: a pessoa acabou em tribunal indiciada por um crime de resistência e coação e dois de injúria agravada, de que o MP a acusava, enquanto as suas queixas de ofensas à integridade física e abuso de poder eram deixadas cair. Tudo teria, provavelmente, corrido muito mal para a pessoa se não houvesse na zona uma câmara de vigilância. Que a filmou a apontar no sentido da sua casa e a companheira, alertada pelos gritos, a trazer o CC, sem que os polícias o quisessem receber. Isto tudo nos conta o tribunal, que conclui: "O depoimento dos agentes não resiste ao confronto com o depoimento das testemunhas e as imagens captadas pela câmara de videovigilância." Quanto ao auto de notícia lavrado pelos polícias, "em nosso entender", diz o tribunal, "pelas razões expostas não é merecedor de qualquer credibilidade".

Em face disso e do facto de as acusações de coação - que pressupõe, sublinhe-se, uso de "violência ou ameaça grave" - e resistência à autoridade dependerem de se considerar legítima a atuação policial, o tribunal passa a analisar essa atuação, começando pelo princípio: podiam os agentes exigir a identificação naquelas circunstâncias? Não, não podiam, certifica; não basta que um cidadão esteja na via pública e que ocorra aos polícias identificá-lo. E transcreve a lei: é necessário que haja "fundadas suspeitas" ou "da prática de crimes", ou de que esteja "na pendência de um processo de extradição ou expulsão", ou "irregularmente no território nacional" ou penda sobre si mandado de detenção. Nada disso se passava ou sequer foi alegado: apenas que aquela pessoa "circulava nas imediações de um bairro problemático". Não podendo exigir identificação, os agentes também violaram a lei na forma como o fizeram, não comunicando os motivos dessa exigência nem explicando quais os meios pelos quais é possível alguém identificar-se - vários, além da apresentação do CC. Ou seja: "Não subsistem dúvidas de que a detenção do arguido para ser conduzido à esquadra a fim de aí o identificarem é manifestamente ilegítima." E conclui a juíza de instrução da Comarca de Lisboa Oeste, citando o artigo 21.º da Constituição, "Direito de Resistência" ("Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não é possível recorrer à autoridade pública"): "Contra o ato ilegítimo dos agentes e desconforme às suas funções teria o arguido o direito de resistir." Nesse direito a juíza inclui não só a resistência física como as expressões injuriosas: "Nas circunstâncias em que foram produzidas, num quadro de grande exaltação em que o arguido se sentia vítima de grave injustiça e havia sido sujeito a grande humilhação pública (...) foram proferidas como forma de protesto e resistência à execução daqueles e não como ataque à honra ou consideração dos agentes."

O tribunal só podia pois não pronunciar o arguido e dar indicação ao MP para proceder de acordo com a "ilegalidade da detenção sofrida". Longe disso, porém, o MP recorreu da decisão para a Relação de Lisboa. Esta, em acórdão de abril de 2017, confirmou a ilegalidade da detenção e o direito de resistência. Este acórdão é citado numa recomendação de dezembro da inspetora geral da Administração Interna para PSP, GNR e SEF, na qual se frisa não poder ninguém ser identificado "só por estar num local considerado sensível", sendo a condução à esquadra sempre o último recurso. Ou seja, a recomendação repete o que está na lei, pelo que a inspetora ou acha que as polícias não a conhecem ou não sabem interpretá-la - ou, pior, estão-se nas tintas. Não é que seja uma novidade, mas ver a própria IGAI a admiti-lo dá a noção da gravidade da situação e da incapacidade da tutela face aos desmandos policiais - desmandos que, como o caso citado demonstra, o sistema judicial acoita e legitima. Não fosse uma câmara de videovigilância, a bravura e clarividência de uma juíza e o respaldo de dois desembargadores e um inocente teria sido espancado, humilhado e condenado por razão nenhuma.

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