O Trump em nós
"Empresas podem proibir véu islâmico". Foi assim que a notícia surgiu, na terça-feira. É certo que dizia respeito a duas decisões do Tribunal de Justiça da UE suscitadas pelo protesto de muçulmanas que usam hijab (véu ou lenço que cobre o cabelo) e que foram despedidas por se recusarem a abdicar dele no local de trabalho. Mas os acórdãos em causa decretam que as empresas têm o direito de, em nome de uma política de "neutralidade" face aos clientes, proibir aos empregados que lidem com o público a exibição de quaisquer símbolos religiosos e políticos -- e até filosóficos (seja lá um símbolo filosófico o que for). Ou seja, os títulos estariam igualmente certos assim: "Empresas podem proibir crucifixos ao pescoço".
Fosse essa a opção noticiosa e decerto grande parte dos portugueses que, em comentários nos jornais e nas TV, aplaudiram a decisão, acrescentando coisas como "se querem usar véu vão para a terra delas" (ouvido num Opinião Pública da SIC Notícias e demonstrando que a noção trumpista de que ser muçulmano é ser estrangeiro tem bastos seguidores por cá), estariam com igual denodo e fúria a contestá-la por "pôr em causa a liberdade religiosa" e mesmo, quiçá, a liberdade de cada um escolher os adornos que entende. Ou seja, aquilo que num caso, ao reprimir a utilização de símbolos "dos outros", é aclamado como uma manifestação da "nossa" liberdade passará, se incluir os "nossos" símbolos, a ser visto como uma repressão inadmissível.
Interpretações mediáticas e populares à parte, porém, as decisões até parecem assisadas: tratam tudo (e portanto todos) por igual. Sucede que tal é, na jurisprudência europeia, controverso, como se constata num acórdão de há seis anos do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos a respeito dos crucifixos nas escolas públicas italianas. Neste, o TEDH revertia uma sua deliberação anterior, de 2009, na qual considerava ser a presença daquele símbolo religioso nas salas de aula uma violação dos princípios da não discriminação e da liberdade religiosa. Se em 2009 o TEDH lembrava ser "obrigação dos Estados vinculados pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos abster-se de impor, mesmo indiretamente, crenças, nos lugares em que as pessoas estão deles dependentes ou ainda naqueles em que as pessoas são particularmente vulneráveis", e assegurava que a presença do crucifixo não pode deixar de ser vista como "uma escolha preferencial manifestada pelo Estado em matéria religiosa", em 2011 fazia marcha atrás. E acolhia os argumentos do Estado italiano no sentido de que a presença dos crucifixos não tem significado religioso, mas sim cultural e tradicional (Itália chegou até a sustentar que os crucifixos podem ser olimpicamente ignorados e que a maioria nem repara na respetiva presença) e portanto "não põe em causa a liberdade religiosa nem das crianças nem dos pais, que podem continuar a educar os filhos de acordo com as suas diretivas filosóficas".
Mas estas posições do TJUE e do TEDH, que do ponto de vista dos princípios jurídicos e constitucionais conflituam tão claramente, podem, numa leitura histórica, política e social, convergir no mesmo (perigoso) sentido. Apesar de o TJUE frisar que a liberdade das empresas de estatuir uma neutralidade perante os clientes abrange todas as manifestações de pertença religiosa e política, as decisões surgem a propósito do uso do véu por muçulmanas e não de lenço ou quipá por judias e judeus, ou de crucifixos por cristãos. Porque é que o problema nunca se colocou antes, se o que não falta são pessoas de cruz ao pescoço? O TEDH já respondeu: as cruzes fazem de tal modo parte da paisagem europeia que impingi-las a crianças na escola pública não é proselitismo, é decoração de interiores.
Enquanto tiramos daqui o chapéu aos tribunais americanos que vão decretando a ilegalidade de sucessivos decretos de Trump a impedir a entrada nos EUA a cidadãos de vários países muçulmanos, a jurisprudência europeia permite que se consagre a ideia de que há religiões "nossas", "neutras", e as outras. A xenofobia pode incubar onde menos se espera.