É 2016, porra

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No Carnaval, um amigo confidenciou-me que o filho de 3 anos insistia em mascarar-se de princesa (do Frozen) para a festa da escola. Os pais estavam sem saber o que fazer: se não tinham nada contra, temiam que o miúdo fosse alvo de bullying. Acabaram por dizer-lhe que o fato era muito caro, argumento que ele acolheu, mascarando-se de boneco de neve. Mas não desistiu: combinou com uma colega emprestar-lhe a fantasia noutro dia. E assim foi: o pai mandou-me fotos do miúdo extasiado vestido de princesa.

Pouco mais velha do que ele, quis fantasiar-me de pirata. De pirata homem. Ninguém viu, nos anos 1960, mal algum em uma menina querer ser personagem masculino. Quase 50 anos depois, ainda é visto com incómodo, agressividade até, que um menino seja, por um dia, princesa de desenho animado. Porquê? A resposta é simples: as raparigas podem aspirar a papéis masculinos, é normal; afinal, são os papéis "superiores", a "norma". Já os rapazes aspirarem a um papel "feminino" é impensável. Como se aceita, incentiva até, que meninas gostem de brinquedos "de rapazes" mas seja tão raro alguém oferecer uma boneca ou tachinhos a um rapaz: pelos vistos ainda não é suposto, no século XXI, eles aprenderem a ser pais ou a cozinhar.

40 anos depois de a Constituição de 1976 ter consagrado o princípio da não discriminação em função do sexo/género no nosso sistema legal, ainda se educam as crianças com base nestes estúpidos estereótipos. O que significa, é claro, que vivemos imersas e imersos neles, como, simbolicamente, as portuguesas, por acaso mais numerosas que os portugueses, são imersas, elididas, no plural masculino por uma língua discriminatória. E ainda há, aliás parece que cada vez mais, quem pergunte para que serve o feminismo. Ou a linguagem inclusiva, como fez Esteves Cardoso no Público.

Entre os estereótipos de género mais prevalentes está a ideia de que a violência, incluindo a discursiva, ou veemência, é uma qualidade masculina; que a guerra é para homens; ser vocal, exigir, combater, é para eles. Daí que a imagem da feminista seja associada à noção de "antifeminina" e sistematicamente ridicularizada; que as suas exigências de igualdade sejam ignoradas nos media como uma coisa chata, de "histéricas", ou sem importância. Mas, mesmo silenciadas, elas (as associações feministas) movem-se. E têm (temos todas e todos, porque a luta beneficia toda a gente) nos últimos meses averbado várias vitórias. A da criminalização do assédio sexual de rua (vulgo piropo); a retirada, com pedido de desculpas, por um rapper angolano de um vídeo que promovia a violência sexual contra as mulheres (na sequência de uma carta aberta do coletivo Capazes); a censura pública (e incidente de recusa) da juíza que destratou Bárbara Guimarães no processo em que ex-marido é arguido por violência doméstica contra ela. Como na canção de Annie Lennox e Aretha Franklin, Sisters Are Doin' It For Themselves. E a ganhar, para variar. Porra, é tempo.

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