As exigências do poder judicial
Ficámos esta semana a saber que o facto de o Conselho Superior de Magistratura ter instaurado um processo disciplinar aos dois magistrados do acórdão da "mulher adúltera" levou seis juízes jubilados a enviar um manifesto aos colegas.
Apresentado pelo Expresso como uma defesa do juiz Neto de Moura, relator do acórdão em causa e de vários outros do mesmo jaez, o manifesto, intitulado "As Exigências de Independência do Poder Judicial" e ainda não tornado público, denuncia alegados riscos para a independência dos juízes. Porque, explica um dos signatários, Noronha do Nascimento, ex-presidente do Supremo, "há pressão sobre os magistrados". Estes, defende, não se podem "ligar ao alarme social para decidir".
Naturalmente que os juízes não podem ser cata-ventos do "alarme social", mas precisamente para que o não sejam há uma série de garantias constitucionais e de estatuto. Mas a notícia do Expresso pouco adianta em relação ao assunto da independência; dá-nos mais elementos sobre outra questão que preocupa os signatários - a liberdade de expressão. Esta, diz, "não é uma "liberdade de funil" ampla para o comum dos cidadãos e "restrita" para os juízes." Mas que liberdade de expressão dos juízes será esta? Sabendo-se que têm, pelo seu estatuto, várias limitações à liberdade de expressão pública - não podem por "dever de reserva" pronunciar-se publicamente sobre decisões judiciais ou processos e estão impedidos de ter atividade política -, será de concluir que está em causa a liberdade de expressão "dentro" das decisões? Poderá isso querer dizer que os autores do manifesto acham que os juízes podem dizer numa decisão o que lhes vier à cabeça?
Para ajudar a perceber, o Expresso faz mais uma citação: "Ao proferir uma decisão o juiz não tem de ser politicamente correto ou conformar-se com as "modas" das maiorias." Não sabemos o que os meritíssimos poderão considerar "politicamente correto" ou "moda das maiorias", mas é uma afirmação confusa, porque o chamado "politicamente correto" está muito longe de ser "moda de maioria" - pelo contrário, até. A "moda" ou modo "da maioria" por exemplo no que diz respeito à violência de género tem sido desculpabilizá-la ou encará-la como algo pouco grave, assim como é "modo da maioria" achar "naturais" os estereótipos de género - e os tribunais portugueses têm refletido amplamente esses "modos", apesar de serem contrários aos princípios constitucionais da igualdade e à Carta Europeia dos Direitos Humanos.
Como ainda esta semana um relatório do Conselho da Europa - Direitos e Saúde Sexual e Reprodutiva das Mulheres na Europa - frisou, o problema dos nossos tribunais é portanto conformarem-se demasiado com aquilo que tem sido a visão maioritária e contra igualitária destas questões. Cita, como exemplo de uma decisão determinada pelos estereótipos de género, o caso do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2014 (o qual levou a uma condenação de Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos) que considerava que a vida sexual de uma mulher a partir dos 50 já não interessava muito. E ainda esta semana voltámos a ver essa moda em prática, com o acórdão do Tribunal de Viseu que considera impossível que "uma mulher moderna" e "não submissa", com o seu próprio salário, seja vítima de violência doméstica - uma visão estereotipada que ignora completamente a complexidade das situações de violência doméstica.
Mas perante estes casos e a jurisprudência do TEDH, aquilo que ocorre aos seis jubilados é achar que está em causa a liberdade de expressão dos juízes. E isso a propósito de um processo em que um juiz insulta uma vítima, chamando-lhe desonesta e adúltera. Será mesmo possível que estejam a defender a liberdade de os juízes insultarem nas decisões? Não, não podem estar. Até porque dizem também que os juízes têm de "usar particulares cautelas nas suas formas de expressão não exorbitando os princípios constitucionais e legais a que estão vinculados."
Que querem então estes juízes? Que defendem deva acontecer no caso de um juiz que não usa "particular cautela na sua forma de expressão" e exorbita os princípios a que está vinculado? Esses deveres são acautelados como, no caso de não serem cumpridos? Como se pune um mau juiz, que viola os seus deveres? A crer no Expresso parece que os seis jubilados acham que não deve ser objeto da única coisa que está prevista no Estatuto dos Magistrados para juízes que o violem: um processo disciplinar. Ou seja, defendem a impunidade. E não só: também exigem a ausência de críticas. "Houve demasiada gente a pronunciar-se", diz outro dos signatários, Pedro Mourão.
Sim, é mau de mais. Resta esperar que, ao contrário do que o arrogante título do seu manifesto implica, os seis magistrados jubilados estejam em minoria no poder judicial. Porque não há poder mais poderoso numa democracia. Que confunda independência com garantia de impunidade e ausência absoluta de sindicância, considerando até a livre expressão das opiniões dos não magistrados - do povo em nome do qual, recorde-se, é suposto a justiça ser administrada - como algo de ilegítimo é simplesmente aterrador.