A vida íntima acabou

É oficial. Posso publicitar aspetos da vida íntima de quem quer que seja, verdadeiros ou falsos, com qualquer objetivo, incluindo o lucro, e ser aclamada pela justiça como heroína da liberdade de expressão.

Por exemplo, posso, aqui, dizer que a juíza Capitolina Fernandes Rosa, dos juízos cíveis de Lisboa, namora com a equipa de râguebi do Ovarense (à qual, a existir, rogo perdão), e que os consequentes desvelos amorosos foram autorizadamente filmados. Não importa se é falso ou verdadeiro, ou se ao divulgar tal coisa estarei a violar o artigo 26.º da Constituição, que estabelece o "direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar". Posso aliás escrever todo um livro de "memórias" em que discorro sobre a vida sexual de Capitolina e pô-lo à venda, alegando que a empregada doméstica viu, enojada, os filmes, contou ao primo e este a mim; a visada nada fará para me impedir.

Porquê? Leiamo-la na sentença, datada de 6 de dezembro, em que recusa provimento a uma providência cautelar num caso semelhante. Primeiro, diz, "é tido por normal que casais de namorados [e sem ser de namorados, digo] se relacionem entre si intimamente (...)". Depois, porque "na sociedade atual, atento [sic] os costumes vigentes, a documentação em privado de momentos íntimos entre namorados não tem uma carga negativa sobre a honra das pessoas que seja digna de tutela (...) cautelar". E se for tudo inventado? "Configurando-se como uma obra literária, [um livro de memórias] não está sujeito aos estritos deveres de informação e a regras jornalísticas." Aliás, "ainda que se entendesse [Capitolina não entende] que estávamos perante uma invasão da privacidade não autorizada (...) sempre se teria de concluir pela ausência de uma lesão objetivamente grave e dificilmente reparável (...)".

Eis pois uma juíza que ajuíza sobre o que a cada cidadão pode embaraçar ou lesar caso alguém comente ou narre a sua vida íntima e sexual, considerando não ser ao cidadão que cabe esse discernimento e gestão, mas a uma "moral comum" por ela estatuída. Uma juíza para quem as palavras "privado" e "íntimo" não querem dizer "privado" e "íntimo", mas "disponível para divulgação e tráfico"; que defende até que se podem inventar, desde que em livro (?), episódios da vida íntima e sexual de pessoas reais - e que nada disso configura "lesão objetivamente grave" e "dificilmente reparável".

Juíza que, note-se, nem esboça a defesa da existência de um "interesse público" numa tal divulgação. Basta, acha, agitar o espantalho da censura: "No caso em apreço uma conceção menos ampla da liberdade de expressão faz surgir o risco de que os tribunais possam funcionar como órgãos de censura, inibindo assim a liberdade de expressão, o que não é legalmente admissível aos tribunais." Num país cujo Tribunal Constitucional protege o sigilo das contas bancárias, a vida sexual foi para hasta pública, pela mão de uma juíza de primeira instância. E nós de volta à era das bengaladas.

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