Trump está a tentar destruir a Europa e isso inclui o Brexit
Trump está lentamente a cercar a Europa por múltiplas formas. Neste momento consegue manipular a economia global e alterar as equações da política internacional. O único bloco solidamente democrático que ainda não lhe obedece é o europeu. E, portanto, tornou-se no seu maior inimigo. Façamos um périplo pelos interesses em conflito.
1. Comecemos pela China. Era a maior promessa eleitoral de Trump. Em consequência, levantou um muro de tarifas aduaneiras. Só que o impacto nos preços e a crise com diversos setores económicos - nomeadamente os agricultores -, geraram um "avança e recua" das suas posições consoante as necessidades. Agora há um suposto acordo parcial no horizonte, mas os especialistas têm desmascarado a estratégia sublinhando serem fachadas sem resultados práticos.
No essencial, Trump gosta destas manobras e brinca ao poder com elas. Neste caso tem do outro lado um país imperial impossível de vencer, não-democrático e com um líder vitalício. Tudo o que ele gostaria de ter.
Este é o seu jogo permanente, à escala do globo, sem escrúpulos nem remorsos. O foco é a sua reeleição e não há tópico mais importante do que "China". Mas a China é decisiva para Trump e ele não a pode hostilizar. Rodeia mas não ataca.
Já o "México" é mais complexo. Trump está a aplicar ao México, e a outros países do continente americano, a mesma receita: destrói os Tratados para os transformar em acordos bilaterais. Faz, aliás, da política internacional um permanente duelo de forças entre o esmagador poder dos Estados Unidos versus o dos "pequenos" países que o enfrentam (cada um, sozinho, é pequeno).
O "México" não existe para Trump. Existe apenas a fronteira do México e a vontade de limitar produções de baixo custo do lado de lá.
Já quanto à Rússia, Trump tornou-a num aliado tácito dos norte-americanos. Depois da invasão da Ucrânia (onde, apesar de tudo, enfrentou sanções sérias da Europa e Estados Unidos), Putin viu-lhe cair no colo em 2017 o agradecido amigo Trump. Por isso mesmo a Rússia é hoje um interlocutor com nova credibilidade para atuar na Síria, ou onde quiser, a seu belo prazer, e sobretudo tornar-se num pesadelo cada vez maior para os países bálticos europeus.
Em simultâneo, mais uma bomba na política internacional: Trump colocou a Síria e os curdos à mercê do presidente turco Erdogan, sabendo que ele usará sem pejo uma "bomba nuclear" contra as críticas europeias a esse ataque. A bomba é a libertação de milhões de refugiados sírios e árabes se Bruxelas/Paris/Berlim não se calarem. Porque os europeus não conseguem ser indiferentes a esta dizimação dos curdos.
Nada desestabilizaria mais a União Europeia que esta tensão com a Turquia e o regresso a uma nova vaga de emigração.
Mas, se tal acontecesse, Trump somaria mais pontos na sua ofensiva de instalação de um populismo de cariz imperial por todo o mundo, emanado a partir de Washington, operacionalizado no terreno por Steve Bannon, seu ex-chefe de estratégia na Casa Branca, e outros mercenários digitais.
Não por acaso, em simultâneo, Trump fragilizou como nunca a NATO, mas igualmente as Nações Unidas e todos os fóruns internacionais onde ele não mande sozinho.
Entretanto, e por fim, tornou-se o aliado de Japão e Coreia do Sul, países cada vez mais radicais e com quem fechou acordos comerciais vastíssimos. O mesmo acabará por acontecer com o resto das grandes potências asiáticas -Indonésia, Malásia, Filipinas, Tailândia. Países muitos deles já desestabilizados politicamente e cada vez mais autoritários.
2. Em contraponto, Trump iniciou uma ofensiva contra os direitos alfandegários europeus. Sendo certo que a Europa é essencialmente exportadora de produtos de alta qualidade e com marca, esse impacto acabará por se fazer sentir junto de uma classe média norte-americana que, quanto mais sofisticada for, menos vota em Trump. Portanto, é uma medida que penaliza um eleitorado que não é naturalmente o seu.
Um dos argumentos para o ataque tem sido a proteção europeia dada à Airbus. Ora, como é óbvio, por si só, a Airbus não justifica este ataque. Há muito mais por detrás disto. Uma das razões é, desde logo, a das regras de controlo alimentar e agrícola que colocam os produtos americanos a milhas do padrão de exigência europeu e sempre foram uma pedra no sapato entre os dois blocos - e umas das razões pela qual Trump não continuou as negociações do TTIP (Transatlantic Trade Investment Partnership) entre os dois blocos.
(Por cá, o vinho verde português, que tem nos Estados Unidos o seu principal mercado exportador, é um dos primeiros a sentir os custos tarifários, mas outros se seguirão.)
Verdadeiramente importante para Washington são as multas de Bruxelas (e Paris) às maiores companhias do mundo - Google, Facebook e Apple - pelos seus comportamentos predatórios em território europeu.
A Casa Branca tem aqui, naturalmente, mais um argumento para vender a ideia de hostilidade europeia à Grande América. Ainda por cima, Trump não consegue aterrar em qualquer dos bastiões da Europa ocidental sem que lhe caia em cima uma chuva de protestos e insultos. A Europa/Macron/Merkel são sinónimos de hostilidade.
Não por acaso Steve Bannon começou por ir beber muito desta competência sobre guerra digital às forças populistas italianas mas rapidamente as converteu em triunfos da sua estratégia: o do Brexit em Junho de 2016 e o de Trump cinco meses depois. Agora anda a espalhá-la por muitos outros sítios, incluindo nas forças populistas europeias de Leste.
É nessa medida que a aliança Trump-Boris Johnson é oportuna para ambos: vai abrir condições de mercado aos ingleses que, entretanto, Trump fechará cada vez mais aos europeus.
Johnson, pensando nisso, exigiu ontem eliminar as normas regulatórias europeias no Reino Unido, liberalizando assim a produção inglesa aos ditames norte-americanos. Este, por seu lado, ganha mais um cliente preferencial e um espaço de influência no mundo, fragilizando de novo a União Europeia enquanto mercado.
A concretização do Brexit é, como Nigel Farage e o seu amigo Steve Bannon poderiam explicar, uma subjugação dos ingleses aos Estados Unidos por via económica, muito pior do que a Londres alguma vez sofreu com Bruxelas. Trump venceu também aqui.
Em resumo: estamos a viver um ataque global, sem precedentes, à Europa iluminista e social. Esse ataque é liderado por um homem que instrumentaliza todos os trunfos militares, económicos e de propaganda digital para ganhar votos e garantir um segundo - ou, como ele próprio diz, quem sabe, um terceiro ou quarto mandatos. (A frase original é: "Porque não? Roosevelt esteve no cargo 16 anos".)
Para a devastação ser completa só falta a União Europeia implodir às mãos dos populistas. Mas nunca esqueçamos o sentudo último das coisas: Trump é o maior vendedor de armas do mundo e o representante dos piores lobbies de negócios à face da Terra. Fará tudo para desencadear o maior número de conflitos e de procura de armamento norte-americano.
Sozinho, de facto, está a levar o mundo para uma inevitável destruição climática, social e humanitária. Não há "impeachment" que o trave porque os norte-americanos gostam deste poder.
Trump já entrou no restrito clube dos que merecem o título de besta apocalíptica. Esperemos, com optimismo, que ele não seja a última.