O pior é acreditarmos que não somos pobres porque somos bons

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Talvez uma das imagens mais desarmantes da minha vida tenha acontecido em setembro de 2009. Estava a sair da fronteira do Nepal, por terra, e dirigia-me à primeira localidade indiana onde era possível apanhar um comboio para Nova Delhi. Eram já quase 22h quando fiz as últimas centenas de metros a pé até à estação. E aos poucos fui reparando que no viaduto por onde ia passando, exatamente por cima da linha dos comboios, em pleno passeio, se acomodavam dezenas e dezenas de pessoas, deitadas a dormir, a perder de vista até à gare.

Num primeiro momento pensei que haveria um grande evento algures e estariam à espera de um comboio dali a umas horas. Errado. "Bem-vindo à Índia", percebi algum tempo depois. Aqueles eram os "intocáveis", a casta que vegeta numa miséria atroz ao longo de todo o gigantesco subcontinente indiano.

Mais tarde, em Nova Delhi, e depois em qualquer grande cidade, esta era a mesma crua realidade, instalada historicamente pela indiferença traçada no destino de cada um, dizem. Um racismo absoluto, aqui e ali, apesar de alguns "intocáveis" conseguirem furar esse bloqueio social à sua condição genética e social, mostrando como os seres humanos são bastante idênticos perante as mesmas oportunidades e desventuras.

Apesar da angustiante pobreza, a Índia é talvez o país mais vibrante onde estive. A cultura, a vida das cidades e a monumentalidade é extraordinária, a par da intensidade pela sobrevivência e pelo desafio diário da piedade.

Convoco a Índia para este texto porque casos como estes tornaram-se para mim numa referência permanente quanto ao "luxo asiático" em que vivemos na Europa, a todos os níveis - menos o da afetividade humana. E porque ele me recorda quão precária é a condição humana e como qualquer um de nós é um sem-abrigo potencial.

Quem tiver dúvidas sobre isso leia "O Preço da Desigualdade", do prémio Nobel da Economia, Joseph Stieglitz, onde ficam evidentes (estatisticamente) duas conclusões. Uma, a de que a nova vaga de sem-abrigo nos Estados Unidos - ou de gente muito pobre, ainda que não dormindo na rua - resultou da maximização do jogo financeiro entre bancos, seguradoras e fundos de investimento, empolando artificialmente até ao estouro o mercado imobiliário. Com isso condenaram à miséria milhões de americanos que, ou perderam o emprego, ou perderam a casa, e em muitas situações ambas as coisas.

A segunda conclusão é a de que o acesso ao trabalho se tornou cada vez mais difícil e, em simultâneo, uma condição de existência infra-humana pelas horas impostas e salários decrescentes. Os exemplos da diminuição do salário/hora em Detroit na indústria automóvel, entre 2007 e 2017, fazem-nos compreender quão sem saída estão os seres humanos face à arrasadora máquina de produção económica.

A tragédia começou com a crise financeira de 2008 (G.W.Bush) e Obama não a conseguiu resolver na íntegra. Agora, com Trump, a máquina económica da principal economia do mundo tornou-se ainda mais selvagem.

Quando em 2016 estive em São Francisco, era quase impossível de acreditar como, na cidade mais próxima do riquíssimo Silicon Valley, existiam tantos sem-abrigo, mergulhados numa espiral de droga e miséria piores que as da Índia. Hoje calcula-se que este número seja já de cinco mil pessoas, muitas delas nas principais ruas do centro.

A desigualdade norte-americana, como muitas outras do Ocidente, tem na origem o vírus o dogmatismo sobre o mérito. É ele que impede os detentores de posições sociais superiores de reconhecerem o sortilégio com que foram beneficiados, por mais esforço e dedicação tenha havido ao longo de toda uma carreira.

Claro que é utópico pensar-se que a sociedade se pode organizar sem hierarquias e diferenças, e de que a iniciativa individual não deva ser muitíssimo valorizada. Mas está a faltar humanidade para resolver problemas sociais graves sem julgamentos baseados no preconceito.

O mérito também é uma circunstância, como demonstrava uma exposição que vi no Museu de Arquitetura, em Paris, no início desta década. Nela estava exposta o plano do Governo francês (Sarzoky) para tornar a capital francesa menos agrupada por estratos sociais e onde qualquer pessoa que tem a morada num bairro problemático deixa de contar com hipóteses de sucesso numa entrevista de emprego. O objetivo da mudança substancial que se pretendia operar passava, exatamente, por não tornar fatal o destino social e profissional de alguém que, desde o berço, está "condenado" pelo sítio onde nasceu.

Deixo para rematar este parágrafo de Stieglitz exatamente sobre isso (p.189): "O ponto mais essencial talvez seja este: ninguém tem sucesso sozinho. Existem muitas pessoas inteligentes, trabalhadoras e enérgicas em países em vias de desenvolvimento, que continuam pobres - não porque lhes faltam capacidades ou não se esforçam o suficiente, mas porque trabalham em economias que não funcionam bem. Todos os norte-americanos beneficiaram das infraestruturas físicas e institucionais que foram desenvolvidas com os esforços coletivos do país em todas as gerações. O que é preocupante é que os 1% do topo, ao tentarem reivindicar para si uma proporção injusta dos benefícios do sistema, podem cair na tentação de destruir o próprio sistema para se agarrarem ao que têm."

O Presidente Marcelo tem toda a razão e legitimidade para forçar resultados públicos quanto à pobreza em Portugal. Mas o quadro de fundo só se resolve quando os detentores do capital aprenderem uma coisa que as escolas de gestão continuam a não ensinar - redistribuir voluntaria e quotidianamente. A ganância não pode continuar a ser a filha preferida da economia porque a sociedade rebenta.

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