'O mundo inteiro arde em segredo / Como pode um homem ficar calado'

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As linhas do poema do título são de um monge católico-budista. Chamava-se Thomas Merton, morreu em 1968 e entre os muitos poemas que nos deixou há este "Em silêncio" (que transcrevo no fim do texto).

Ouvi-o na extraordinária "Ronda da Noite", de Luís Caetano (Antena 2), na habitual rubrica sobre poesia com essa outra grande companhia radiofónica que é a poetisa e professora, Ana Luísa Amaral.

O poema está no programa de 17 de Julho e só agora a ele cheguei via podcast (RTP-play ou Spotify) enquanto percorria, de bicicleta, grandes extensões da Reserva Natural de Landes da Gasconha, no litoral próximo de Bordéus. São vias exclusivas para ciclistas, têm centenas de quilómetros, levam-nos pelo meio de densas florestas mediterrânicas povoadas de pinheiro bravo e alguns quercus (maioritariamente carvalhos).

Também ali há temperaturas elevadas em alguns dias (Bordéus atinge hoje 39 graus), e há vento forte, mas a Reserva está protegida sob o olhar de milhares de pessoas que vivem o prazer da companhia das árvores.

O Estado francês é detentor da maioria dos terrenos das reservas e estas estão organizadas com corredores corta-fogo de grandes dimensões, áreas-tampão sem árvores, monitorização permanente do território e, sobretudo, estão ali espécies que lhe são naturais, adaptadas ao clima e à biodiversidade.

Florestas como estas são decisivas se tivermos em conta a notícia de ontem do DN com o título Cientistas apontam para o colapso da civilização num prazo de 40 anos. Ela é tão dura que não a conseguimos absorver. Dois académicos publicam um estudo na Scientific Reports onde afirmam que, por força da desflorestação massiva e do aumento da população humana, "a probabilidade da nossa civilização sobreviver é inferior a 10%, no cenário mais otimista". Para Mauro Bologna e Gerardo Aquino, a única solução é uma rutura com o modelo de consumo que mantemos.

Ora, essa tarefa pura e simplesmente impossível, se olharmos, simbolicamente, para o gigantesco consumo de plástico e materiais não reutilizáveis que a Covid-19 gerou. Obviamente o problema maior é tudo o resto: a gigantesca quantidade de emissões que continuamos a produzir nas atividades diárias de elevada pegada carbónica.

Mas o problema não é este estudo, é a realidade. Esta semana, as newsletters dos dois mais importantes jornais internacionais dão conta dos paradoxos quotidianos. O The Guardian destacava que o nível de dióxido de carbono (CO2) da Terra, hoje, está já em 415 partes por milhão, um valor registado há 3,3 milhões de anos - ainda os humanos estavam longe de surgirem como espécie e o planeta estava numa era geológica onde a fotossíntese começava a ser uma realidade para as espécies de flora que se instalavam.

As 415 partes de CO2 por milhão são assustadoras porque o estudo da Universidade de Southampton, publicado recentemente na revista Nature, assinala que a situação caminha para atingir as 427 partes por milhão de CO2, em 2025, e este valor é simbólico porque foi o máximo detetado até hoje em fósseis - neste caso, recolhidos no Mar das Caraíbas - e que contam uma história trágica para o mundo litoral que construímos.

Quando a Terra tinha 427 partes de C02 por milhão na atmosfera, há mais de 15 milhões de anos, o mar estava 20 metros acima do nível onde hoje se encontra. Ou seja, se a situação se repetir, isto significa a destruição de milhares de cidades por todo o mundo e obviamente também em Portugal.

Já ouvimos isto muitas vezes, é verdade. Mas quando chegará o dia em que acreditamos que vai acontecer? Só mesmo quando suceder?

O degelo do Ártico e da Sibéria, com as consequentes libertações do metano - o mais perigoso dos gases aprisionado pelo "permafrost" -, é uma realidade acompanhada da perda de neve nos Himalaias e em todas as grandes cordilheiras frias do mundo, desde os Alpes ao Kilimanjaro.

E isto não é um futuro longínquo. É hoje.

O New York Times, por seu lado, assinalava os efeitos cada vez mais regulares e devastadores dos furacões dos últimos dias nos Estados Unidos. As consequências destes desastres nas cidades trazem à tona a falta de regras nas construções e a perda de habitação para milhões de pessoas. Ao mesmo tempo, as instituições públicas locais não têm dinheiro para reconstruir largas áreas afetadas.

O problema transforma-se numa hecatombe social quando as populações mais carenciadas ficam totalmente indefesas perante sucessivas catástrofes, sem forma de fugirem ou obterem modos de sobrevivência.

E se isto é assim nos Estados Unidos, observem-se as consequências das chuvas diluvianas sobre o Bangladesh no final do mês passado e que deixaram 25% do território submerso, dois meses depois de um ciclone ter arrasado o sudoeste do país. A exposição de um território como o Bangladesh às alterações climáticas tem sido repetidamente enfatizada e isso significa falar do destino de 165 milhões de pessoas, um quarto das quais terão perdido tudo nas últimas cheias.

Poderia continuar a dar mais exemplos, mas é inútil porque este é o novo normal. No caso português, hoje defrontar-nos-emos de novo com temperaturas elevadíssimas e dezenas de incêndios, como se fosse inevitável, como se nada se pudesse fazer. E é verdade: nada está a conseguir parar a curtíssimo prazo um modelo de consumo que não tem qualquer sustentabilidade futura.

Água, fogo, vento, ar. Os quatro elementos, quais quatro cavaleiros do apocalipse, a fazerem-nos avisos sistemáticos quanto ao perigo que aí vem. Acreditamos?

Thomas Merton profetizou o tempo da contradição entre o silêncio com que nos esmagamos, por necessidade ou desistência, e os nossos pés a arder. Este é o poema, na íntegra (traduzido por Ana Luísa Amaral):

Em silêncio
Escuta as pedras do muro
Não fales, elas tentam
dizer o teu

nome.
Escuta
os muros que vivem.

Quem és tu?
Quem
és tu? De quem
é o silêncio que tu és?

Quem (fica calado)
És tu (tal como estas pedras
estão caladas). Não
penses no que és
muito menos no que
podes vir a ser um dia.

Sê antes o que és (mas quem?)
sê o impensável
​​​​​​​esse que não conheces.

Ah, não fales não
enquanto estás ainda vivo
e as coisas todas vivas à tua volta falam

(Eu não ouço)
Ao teu próprio ser
falam pelo desconhecido
que existe em ti e nelas.

Tentarei como elas
ser o meu próprio silêncio:
e isso não é fácil. O mundo inteiro
arde em segredo. As pedras
ardem, até as pedras me queimam.
Como pode um homem ficar calado
ou escutar as coisas todas ardendo?

Como se pode ele atrever a sentar-se com elas
Quando todo o seu silêncio, o delas, arde

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