E se saísse da prisão e comprasse uma bicicleta?

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A minha nova bicicleta, elétrica, tem mais de três mil quilómetros feitos num só ano. Nunca imaginei que acabasse por andar tanto quando a comprei. Começou por ser uma ideia teórica - ir trabalhar todos os dias com ela - até passar a ser real. Nos últimos doze meses só por uma vez usei um carro na ida para o trabalho porque estava a com alguma febre. Em meia dúzia de dias de dilúvio (sim, realmente não chove insistentemente, nem no Inverno...) usei os transportes públicos.

Se me dissessem que isto ia ser assim, não acreditaria, mas a verdade é que ir e regressar de bicicleta para o trabalho pode rapidamente transformar-se num dos melhores momentos do dia. E numa mudança como esta, o mais difícil é experimentar porque as vantagens são superiores aos problemas. As razões:

1. Menos stress. Sair de casa e saber-se que mais minuto menos minuto se chega onde se quer, sem crise de estacionamento, sem a prisão das filas, é um privilégio impagável. É muito compreensível que pais com crianças pequenas não consigam "embarcar" no formato holandês das crianças nas cadeirinhas ou nos atrelados. Mas há muita gente que podia fazer a experiência e embarcar neste movimento, mas isto nem lhes passou pela cabeça. É difícil? Não. Uma bicicleta elétrica é melhor que uma mota (para distâncias de cidade) porque é menos perigosa, mais económica, ambientalmente mais amigável e garante o mesmo princípio - chegar-se a horas e apresentável (mesmo de fato ou vestido) à empresa ou até a eventos mais formais. Esta diminuição de stress é uma pequena revolução de saúde, energia e equilíbrio com o mundo à nossa volta. É uma liberdade que só compreende quem já não consegue passar sem ela.

2. Autonomia e economia. As bicicletas elétricas têm atualmente autonomia para mais de 100 quilómetros no apoio elétrico mais suave, normalmente designado por ECO, a que seguem níveis intermédios, até se chegar ao apoio máximo ao pedalar - a velocidade "Turbo". Quem anda sempre em "turbo" tem bateria normalmente para 40 a 50 quilómetros e praticamente não faz esforço. Para quem gosta de fazer algum exercício, a bateria nunca mais acaba... Significa isto que só é necessário carregar as baterias de vez em quando, dependendo do número de quilómetros e do trajeto - se tem muitas subidas ou não. O carregamento pode demorar duas a três horas até a bateria atingir a carga máxima e, como pode ser feito durante a noite, o custo por quilómetro é despiciendo, sobretudo quando comparado com a fórmula "carro + combustível + manutenção".

3. Os hábitos portugueses. O maior problema de todos ao viajar-se de bicicleta ainda é uma espécie de fúria de muitos condutores, seja nas tangentes aos ciclistas, seja na prioridade em atravessamentos de zonas clicáveis, seja ainda no sistemático estacionamento em cima das ciclovias. Mas, sobretudo, os maiores perigos surgem em situações cada vez mais frequentes: condução com telemóvel. O número de problemas por falta de atenção é enorme. E as situações mais críticas que vivi ao logo deste ano partiram sempre do mesmo comportamento: pessoas que estacionam, ficam no automóvel (por exemplo a escrever uma mensagem ou a acabar um telefonema) e logo a seguir abrem a porta sem olharem pelo espelho. É assustador ir-se numa ciclovia, levar-se com uma porta e cair-se para a estrada onde estão a passar carros, autocarros, camiões, etc... É o meu pesadelo. Já quase me aconteceu isto por duas vezes. Como evitar isto? É difícil, mas é necessário ir com atenção a quem estaciona e, se não se andar muito depressa, consegue-se quase sempre corrigir o erro dos outros. Começa a ser um problema também a loucura com que conduzem os jovens condutores das motas de entregas de refeições...

4. Faixas bus e ciclovias. Veremos o que é alterado na legislação agora aprovada pelo Governo com a nova Estratégia Nacional para a Mobilidade Ciclável, aprovada pelo Governo no início de Julho (mas ainda não publicada). Lisboa é claramente uma cidade cada vez mais focada nesta estratégia. Mas um pouco por todo o país há sinais de que as autarquias perceberam que a mobilidade não pode continuar como está, sob pena de nada fazermos para contrariar as alterações climáticas. Na discussão pública que lhe deu origem, o Governo pretendia aumentar as ciclovias de dois mil para 10 mil quilómetros através de investimentos de 300 milhões de euros, bem como ter um fluxo de 7,5% por cento de trabalhadores e alunos a deslocarem-se diariamente de bicicleta, contra apenas 0,5% por cento em 2011. A intenção final é contribuir para que a redução de emissões de carbono seja de 40% face a 2011.

5. Bicicletas nos transportes públicos. Este item é particularmente complexo. A CP é a empresa que assumiu mais cedo a possibilidade de se transportar bicicletas nos comboios. Só que, depois, as infraestruturas em redor são tudo menos amigáveis. Transportar uma bicicleta para as plataformas de embarque da Gare do Oriente ou de Campanhã é um pesadelo. Mas no Metro de Lisboa ainda é pior face ao desenho das estações - por exemplo, escadas sem frisos laterais para fazer deslizar as rodas das bicicletas, elevadores estreitos, carruagens sem zonas destinadas a colocar as bicicletas, etc.. No Metro do Porto é mais fácil em quase toda a rede, exceto nas estações subterrâneas do centro da cidade onde as bicicletas não foram equacionadas. No entanto, os ciclistas sabem que podem colocar a bicicleta na última carruagem e isso já é um princípio de "boa-vontade". Em algumas cidades europeias, elétricos e autocarros têm, à frente ou atrás, suportes para bicicletas, o que permite aos passageiros dependurá-las à entrada ou saída. E como raramente há muita gente de bicicleta (no essencial, as pessoas circulam com elas), isto basta para resolver situações pontuais ou, sobretudo, quando chega a noite e se torna perigoso fazer o troço final até casa fora das ciclovias. Passei uma vez por uma situação dessas no autocarro da Carris de Lisboa, o 750, em Algés, e o motorista só a muito custo autorizou a irregularidade de a meter dentro do autocarro.

6. E as férias. A verdade é que depois de se embarcar no gosto da circulação através de mobilidade suave, é difícil largar as duas rodas. Apesar de pouco organizadas e publicitadas, as ciclovias criadas em cima das antigas linhas de comboio de todo o país são passeios incríveis. A Via Algarviana (que une as pontas do Algarve pelo miolo da região) é um tesouro que está de novo a ser reabilitado (por exemplo, no ano passado, a ponte da ciclovia sobre o Almargem estava em derrocada e impedia a passagem entre Tavira e a Praia Verde - e não sei se este ano já foi reaberta). Mas muitas outras ciclovias tornarão Portugal num paraíso para quem o quiser percorrer por estradas alternativas para todos os gostos e até em família. Em simultâneo, levar a bicicleta até às rotas europeias, ou à França rural, é cada vez mais interessante e os sistemas de navegação proporcionam rotas de bicicletas fascinantes, cruzando castelos, praias fluviais, cidades e aldeias. De uma assentada, a vida fica mais próxima da natureza, das outras pessoas, das lojas ou dos serviços públicos, do urbanismo e da paisagem. Deixa de ser uma prisão quotidiana entre estacionamentos ou garagens. Tentar-se viver fora dessa armadura de metal que nos aprisiona a todos não é apenas uma questão planetária: é uma questão de prazer e liberdade. Arrisca?

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