Bayer-Monsanto não se livra do cancro no glifosato
O jornal francês "Le Figaro" noticiava há dias, na primeira página do seu suplemento económico, um acontecimento relevante para as bolsas europeias. Pelos vistos, há um problema com essa potência mundial alemã chamada Bayer. E tudo começou pela estratégia, aparentemente ousada, de adquirir a norte-americana Monsanto, uma das empresas mais contestadas em questões ambientais. O reflexo aí está: a compra custou aproximadamente 560 mil milhões de euros há pouco mais de um ano, mas, por causa dos processos judiciais contra a Monsanto - ligados aos efeitos secundários no uso do herbicida "Roundup" (glifosato) -, a cotação bolsista da Bayer já desvalorizou 30 mil milhões de euros.
O problema não acaba aqui: só nos Estados Unidos há 18.400 processos contra a empresa por danos à saúde e a Bayer/Monsanto perdeu recentemente um primeiro grande processo judicial interposto por um jardineiro que acusou (e provou) a origem do cancro por uso reiterado do glifosato no seu trabalho. Só esta indemnização custou 78 milhões de dólares.
A sentença lança um precedente temível quanto ao custo de todos os outros processos. Daí que a medida defensiva da Bayer seja a de negociar um acordo global com os queixosos e, segundo analistas citados pela Bloomberg, gastar um milhão de dólares em média por litigante. Número, no entanto, contraditado por outras opiniões que dizem ser impossível fechar este dossier por menos de 20 mil milhões de euros.
Uma fortuna. E mesmo assim estamos a falar de insignificâncias face ao maior êxito alcançado pelo gigante alemão: ter evitado a proibição do uso de glifosato na União Europeia.
A defesa do interesse da grande empresa alemãs fez com que a União Europeia tivesse adiado por mais cinco anos a proibição do herbicida (até 2022). Aliás, nestes dossiers, a balança pesa sempre para o mesmo lado: entre as consequências imediatas de uma queda em bolsa com perdas da Bayer, ou o risco cancerígeno de milhões de europeus, a decisão foi infelizmente a habitual.
Há, entretanto, prenúncios de uma revolta em surdina instalada dentro da própria Bayer. Um documentário alemão sobre este tema, transmitido em Portugal pela RTP3, dava conta de um núcleo interno de trabalhadores que contestou a fusão com a Monsanto e continua a lutar para que a Bayer não seja definitivamente contaminada pela Monsanto e passe a ser uma marca ambientalmente maldita. Até porque, quando se percorre a lista dos produtos da empresa alemã de "A a Z", é evidente como a Bayer significava outra coisa: alívio e bem-estar - desde a clássica Aspirina ao Alka-Selzer, Bephantene, Dr. Scholls, Rennie ou Advantix (para animais domésticos).
Este choque estratégico sobre o futuro da marca acentuou-se com a ascensão do atual "chairman", Werner Baumann, um financeiro puro que, depois de 25 anos na Bayer em altas posições de gestão e controlo, passou em 2016 para a liderança da empresa. Dois anos depois adquiriu a Monsanto.
O perfil de Baumann bate normalmente sempre certo com a vontade dos acionistas especulativos e quase nunca com uma visão de longo prazo. A sede de aumentar os lucros - a Monsanto lucra mil milhões de euros anualmente com o Roundup, num mercado que mundialmente vale quatro mil milhões de euros -, tornava este negócio aliciante. O passo seguinte será vermos também a Bayer a lutar pela introdução massiva das sementes transgénicas na Europa, negócio em que é relevantíssima em todo o mundo.
Mas, afinal, em vez do golpe de génio, as desvalorizações não param.
A lógica da desresponsabilização dos investimentos financeiros faz, recorrentemente, com que se tomem decisões assim: escolhe-se um "chairman" sobretudo focado em mais lucros, que os distribui anualmente a um lote de pessoas que não quer saber das consequências desses ganhos crescentes. Mas, tal como no "Dieselgate" da Volkswagen, os accionistas são responsáveis por acentuarem a pressão nos resultados e manterem equipas de decisores pouco focadas na sustentabilidade dos produtos que têm no mercado.
Entretanto, uma questão central: porquê combater o glifosato? Margarida Silva, professora da Universidade Católica (Escola de Biotecnologia, Porto) que tem tratado sistematicamente deste tema ao longo da sua carreira e enfrentado os lobbies do negócio, escrevia recentemente: "A história da toxicologia tem mostrado que substâncias atualmente proibidas (como o DDT, os PCBs, o amianto ou a talidomida, entre muitas outras) passaram por uma fase em que eram livremente comercializadas e consideradas inócuas. Dois outros aspetos em comum são o longo período de tempo que a proibição demorou a chegar após o conhecimento científico estar disponível e as múltiplas tentativas de protelamento por parte dos interesses económicos afetados por essa proibição (...). Qualquer busca simples no motor Google permite comprovar estas afirmações."
A professora da Católica sublinha a consistência da prova científica do dano gerado pelo herbicida: "Nenhum cientista que se preze pode dizer que o glifosato (ou qualquer outro químico) é inócuo para a saúde. Isto porque o método científico se baseia numa abordagem hipotético-indutiva e como tal é impedido de dar como provado o que dependa da ausência de observações. Portanto, a priori, é possível provar que o glifosato faz mal, mas é impossível provar cientificamente que não faz. Quando há estudos que provam o impacto negativo e outros que não encontram efeito nenhum - e porque a ciência não é uma democracia - não se fazem médias nem se conta a maioria. Cada estudo é diferente do anterior (mesmo sem levar em consideração o efeito do observador) e, portanto, é perfeitamente lógico que um estudo encontre zero efeitos e outro estudo encontre carcinogénese. E, quando se encontra, é porque existe."
Por estas razões há tantos milhares de pessoas no mundo (agricultores incluídos) a combater o uso deste herbicida. Insistir no erro tem uma fatura direta na vida das pessoas e dos sistemas de saúde de cada um dos países. Ignorar este facto, dizem os tribunais norte-americanos, é um crime que vai ter uma fatura pesada.