Amazónia esventrada, oceanos acidificados, solos mortos. Eu?
1. Bolsonaro. Obviamente não vale a pena perder tempo com gente que fica na História pelas piores razões. Mas a Amazónia conta muito e o "capitão" detém a soberania daquele espaço único no mundo. Está mandatado pelos seus apoiantes para transformar em dólares o maior tesouro natural do planeta.
Dói muito porque precisamos desesperadamente daquele oxigénio e da matéria orgânica que flui pelo Amazonas para alimentar os mares. Mas antes de classificarmos "Bolsonaro" de forma simples, é importante olharmos para o monstro que criamos. Ele não agiria assim se o mercado não o pedisse e apoiasse.
Nós, os consumidores, queremos muito o que a Amazónia produz. E o Brasil quer legitimamente vender, como todo os países. Ora, nenhum fator é mais decisivo na desflorestação da Amazónia do que a plantação de soja usada para alimentar gado, cuja carne é exportada pelo mundo.
Simplificando isto: preservar a Amazónia significa consumir menos à escala global, principalmente carne e leite. Estamos dispostos a reduzir o impacto ambiental da nossa alimentação?
2. Minérios da Amazónia. Comecemos pelo carvão e a exploração de recursos minerais no resto do mundo. A China continua a construir novas centrais a carvão, fontes de grande impacto no aumento da temperatura do planeta. Trump também é apoiante da manutenção destas centrais.
Além disso, os Estados Unidos são o maior poluidor mundial per capita, com uma percentagem escandalosa de emissões em transportes e gado. Em cima disto, como cereja no bolo, Trump abandonou o Acordo de Paris. A nossa indignação é seletiva ou devíamos boicotar mais os produtos americanos e chineses?
O mundo inteiro está atento e interessado no crescimento da exploração mineira da Amazónia porque há cada vez mais procura de metais raros, alguns dos quais em quase monopólio na China. Essa exploração mineira está em crescimento por todo o mundo, Portugal incluído. O Alasca vai ser transitável, com tudo o que significa de poluição, mas igualmente de exploração dos recursos petrolíferos e de minérios - o mesmo se passa na Sibéria. Continuamos a pedir apenas aos brasileiros para não destruírem a "nossa" amazónia e o "nosso" oxigénio?
Bloquear o acordo do Mercosul é absurdo: há muitos países envolvidos no acordo comercial, não apenas o Brasil. Para quê gerar ainda mais pobreza na América do Sul?
3. Os oceanos. Com menos floresta e mais poluição agrícola, pecuária e mineira na Amazónia, reduz-se a vida do maior rio do mundo e o gigantesco caudal de sedimentos que desemboca no oceano. Os peixes têm menos alimento, portanto, há menos stock de massa marinha.
Vejamos o nosso caso: os incêndios foram arrastando toneladas de cinzas até aos rios. Estes, não as podem expelir para o mar por força de todas os obstáculos que bloqueiam os cursos de água. Brincamos com barcos de recreio e turismo-proveta em praias fluviais artificiais (de barragens) mas os peixes já não sobem os rios e a eutrofização multiplica-se, com plantas e algas à superfície, que não deixam passar a luz e diminuem o oxigénio dentro de água.
Isto sucede em muitos rios portugueses. Pior: à entrada deste milénio, dois dos poucos rios livres da Europa - Sabor e Tua, em Trás-os-Montes - começaram a ser represados com as barragens de "Sócrates e Mexia", numa altura em que a tecnologia "barragens", e o seu rendimento quase neutro em carbono, já não era superior ao impacto na biodiversidade e ecossistemas locais. E isto sucedeu perante a quase indiferença do país e dos média.
Entretanto, agora queixámo-nos da pobreza de biodiversidade dos oceanos, da erosão das nossas praias, da crescente falta de peixe na nossa costa. Que lições tiramos pela degradação dos nossos "Amazonas"?
4. Solos nacionais. Tornamos os nossos solos em meras plataformas de produção intensiva de madeira, papel ou monoculturas agrícolas (olival intensivo, por exemplo).
No salazarismo foi imposto o culto da monocultura do pinheiro. No pós-25 de Abril floresceu a monocultura do eucalipto. E desde há duas décadas surgiu a vertigem do azeite à custa da rega gota-a-gota do Alqueva (até os solos aguentarem).
Muitas destas produções, em formato de monocultura ao longo de grandes áreas, são devastadoras para o futuro dos solos ou para a expansão dos incêndios. Portugal é o país que mais arde na Europa, ano após ano. E achamos normal. E não mudamos a gestão da terra, como se o oxigénio português não fosse tão importante como o oxigénio que importamos do pulmão do mundo.
Mudar o mundo passa por começarmos a mudar o padrão de cultura dos solos e exploração da nossa floresta. Somos um caso de sucesso mundial na indústria do papel. Mas sabemos quanto custa ambientalmente este "sucesso" feito a partir de uma espécie "importada" que os nossos ecossistemas não entendem? Sempre que se fala em diminuir área de eucalipto levantam-se os "postos de trabalho" ou o "valor acrescentado bruto" das exportações, sem termos em conta a destruição de ecossistemas sucessivos - vegetação, água e rios, pobreza dos solos, emissões brutais nos incêndios, abandono dos territórios pelos nossos indígenas (os rurais que restam). Isto não é "Amazónia"?
5. A Amazónia tem atualmente mais de 1700 fogos ativos. O poderoso lobby do gado (e da soja) brasileiro poderá ter sentido finalmente as mãos livres porque o poder em Brasília estava do seu lado. Bolsonaro decapita organismos públicos ao estilo Trump e alinha legislação para cumprir o seu programa: fazer crescer a economia independentemente dos custos ambientais. Sabemos, no entanto, que os avanços na desmatação são quase sempre irreversíveis. Parar este crime é um ato de autopreservação à escala global.
Só que estamos reféns de políticos como Bolsonaro e isso é uma tragédia angustiante. Mas, honestamente, não temos autoridade moral para invocar a Amazónia se não abandonarmos mais o transporte individual, a alimentação de grande pegada ecológica, não reduzirmos significativamente o consumo de papel e plástico e não pensarmos na eficiência energética dos locais onde vivemos.
É fácil aderirmos e exigirmos tudo pela querida e distante Amazónia, "cool" nas redes sociais e no ego com que nos sossegamos. E ela precisa e merece. Mas dificílimo é fazermos algo de diferente na nossa vida. Isso sim constituiria uma medida inteligente de adaptação e antecipação. A Natureza diz-nos todos os dias que já não consegue dar mais. É já uma questão de misericórdia com os seres vivos, e a favor de nós próprios, mudarmos o curso da catástrofe.