Sirte Líbia (Síria na Líbia)

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O sonho antigo do ex-líder líbio Muammar Kadhafi de transferir a capital do país de Trípoli para Sirte, o local onde nasceu, nunca foi totalmente implementado. A construção dos novos edifícios começou, até construíram o centro de congressos, mas a ideia não pôde ser concretizada por variadas razões. A potencial transferência já assustava o corpo diplomático, acostumado a Trípoli e às suas vantagens, e sabendo que Sirte nunca substituiria aquela cidade. A razão pela qual a cidade entrou na história de África está na Declaração de Sirte emitida em 1999. Quando a União Africana foi criada, a ideia era que a organização viesse a ser similar à sua congénere europeia. Foi nesse momento que Kadhafi se voltou para o seu próprio continente, depois do fracasso nas tentativas pan-árabes de fortalecer a sua posição de liderança.

Foi em 2009. Quando participei na Cimeira da União Africana em Sirte, onde se reuniram os líderes africanos e muitos convidados, entre eles alguns reis dos quais muitas pessoas nunca ouviram falar. Kadhafi foi trazido no veículo elétrico, semelhante aos que se podiam ver nos aeroportos a transportar bagagem, diretamente para o salão de reuniões. Ele não parecia muito saudável, mas presidiu à Cimeira com sucesso, sentado à enorme mesa redonda. Eu estava na plateia ao lado, ouvindo o discurso do convidado principal, o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, com os fones nos ouvidos, sem nenhum som e sem o recetor de voz, que nunca foi me foi entregue pelos organizadores. À minha frente, reparei em Luís Amado, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal e Benita Ferrero-Waldner, Comissária Europeia para as Relações Exteriores. Kadhafi era, na época, um governante indiscutível com algumas ideias especiais, das quais a elevação da cidade de Sirte, sem as infraestruturas necessárias, a capital da Líbia, era uma das menores. Tudo parecia irracional, mas não para mim, acostumado à lógica diferente que existia em todo o Norte de África e no Médio Oriente.

Dois anos depois, Kadhafi já não estava no poder. Ele foi derrubado no tumulto da insatisfação geral do povo da Líbia, um furacão causado pela Primavera Árabe, mas também pela campanha de bombardeio dos países da NATO. Quando o poder da opção pró-democrática de grupos não-governamentais desorganizados, constituídos na sua maioria por jovens, colapsou irremediavelmente, o que era esperado, a Líbia dissolveu-se em pequenos territórios sob o domínio das potências locais e daqueles que são leais ao estado islâmico. Kadhafi era conhecido como alguém capaz de controlar as diferentes tribos da Líbia e outros grupos, usando métodos diferentes, dos quais alguns eram extremamente severos. Quando ele perdeu o poder, os combates internos continuaram em menor escala, até chegarem ao ponto de duas grandes forças opostas. De um lado está o governo de Trípoli, liderado por Fayez al-Sarraj, reconhecido pela ONU, do outro estão as forças do general renegado Khalifa Haftar, de Bengazi. O que é mais claro na Líbia do que na Síria é o facto de que os papéis nesta guerra estão obviamente distribuídos, especialmente daqueles que não "residem"naquele país, mas que vêm do exterior. O governo de Trípoli é apoiado pela Turquia e principalmente pelo Qatar e as forças de Haftar pela Rússia, Egito e Emirados Árabes Unidos. Este tipo de situação está a mudar dramaticamente a possibilidade de a população local desempenhar o papel principal no conflito, porque a sua força e o seu número não são fatores decisivos. O que é agora mais importante na frente de batalha são as decisões dos atores externos sobre o nível de envolvimento no conflito, com base nos objetivos estratégicos da Turquia, Rússia e reinos e emirados do Golfo.

As consequências da Primavera Árabe podem ser vistas de maneira mais vívida no enfraquecimento do poder central de líderes antes indiscutíveis do Egito, Síria, Argélia, Tunísia e Líbia, o que incentivou as ambições de muitos senhores da guerra locais. A incapacidade de alcançarem a vitória militar por si mesmos, fê-los obviamente procurar o apoio militar e económico estrangeiro. Foi assim que Haftar conseguiu chegar aos arredores de Trípoli, mas recentemente perdeu o controlo da base militar al-Watya, o que imediatamente tornou possível a intervenção mais musculada da Turquia.

Agora, há batalhas muito perto da cidade de Sirte, que ainda é controlada por Haftar, que sabe que agora pode contar realisticamente com intervenções mais poderosas dos seus aliados estrangeiros. O problema é que esses parceiros estrangeiros da guerra civil da Líbia fortalecem o seu envolvimento sempre que os seus procuradores começam a perder terreno. É assim que tudo permanecerá até que as negociações sejam reconhecidas como a melhor solução possível, pelo menos por algum tempo.

Toda a história da Líbia está agora a voltar ao início deste artigo, porque os dois exércitos, compostos por soldados líbios, mas também da Turquia, mercenários da Rússia, aviões não tripulados dos emirados e quem sabe de onde mais, lutam para tomar ou manter o controlo da cidade natal de Kadhafi, Sirte, que está novamente a tornar-se o símbolo da vitória total. Sirte já estaria há muito tempo fora dos combates se não fossem as forças que estão a usar armas muito mais poderosas para defender as suas posições locais, mostrando a determinação de fortalecer a sua presença. É assim que a Síria se move lenta, mas seguramente, para a Líbia, juntamente com os seus participantes mais poderosos, vendo os tempos de turbulência no mundo árabe, a ausência voluntária dos EUA e da UE, a crise devido à pandemia do coronavírus, como a sua oportunidade para fortalecer os seus interesses a longo prazo. A questão é quem pode parar com essa tendência e quem está interessado em fazê-lo.

O que se sabe é que nas relações internacionais, principalmente durante crises, não há vazio. Se um lado sair, o outro entrará.

Antigo embaixador da Sérvia em Portugal e investigador do CEI-Iscte

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