Que nova agenda cultural para uma Europa dividida?
O poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger, autor, entre muitos outros, de um livro sobre os custos do funcionamento da Comissão Europeia em Bruxelas-Estrasburgo, mas também de um ensaio publicado após a queda do Muro de Berlim e a assinatura do Tratado de Maastricht em que fala do clima de guerra civil que progressivamente se tem vindo a instalar na nossa vida quotidiana, escreveu um dia que "a cultura é como lançar uma pastilha de Alka-Seltzer num copo com água; não se vê o que faz mas produz sempre efeito". Na verdade, é dizer pouco e muito ao mesmo tempo.
O mesmo autor disse também que "a mediocridade na política não deve ser desprezada; a grandeza não é necessária".
Na passagem do 60.º aniversário do Tratado de Roma, os líderes dos 27 Estados membros tornaram pública a ambição de que "os cidadãos tenham novas oportunidades para o desenvolvimento cultural e social e para o crescimento económico", devendo, para esse efeito, a União Europeia "preservar a herança cultural e promover a diversidade cultural".
Sempre que fala em desenvolvimento económico e social valoriza-se a importância estratégica da cultura, mas depois verifica-se, sobretudo num contexto que não deixou de ser de crise, que não há dinheiro para a apoiar e estimular. Entretanto, há ministros, talvez porque decorrerão eleições importantes no próximo ano, que apontam o 1% do Orçamento do Estado como meta a atingir, embora todos saibamos que essa meta será estruturalmente difícil de alcançar, quase tão difícil como revitalizar o Conselho Nacional de Cultura, morto de morte política e institucional, sem sequer um suspiro de despedida, pelo governo anterior.
A Comissão Europeia declarou que "no interesse comum dos seus Estados membros deve ser valorizado o pleno potencial da educação e da cultura como criador de emprego, de crescimento económico, de justiça social e de cidadania activa, bem como os meios para enriquecer a identidade europeia em toda a sua diversidade". Está dito e bem dito, mas falta dizer muito mais.
Como a Comissão Europeia também afirma, esta dinâmica pode e deve criar nos europeus um sentido de pertença. Uma Europa incerta, insegura e dividida, em que a extrema-direita conquista posições em países como a Polónia, a Hungria, a Áustria e a Eslovénia, entre outros, que podem pôr em causa a paz no continente, deve ver a cultura e o património de memória que a ela se encontra associado como uma riqueza que não serve apenas para atrair turistas e os fidelizar, mas sobretudo como instrumentos de unidade e diálogo que nos permitem pensar sobre o que somos, sobre o que fizemos e sobre o que queremos.
As duas guerras que destruíram a Europa e outras parcelas importantes do mundo no século XX deflagraram na Europa e não houve monumentos e obras-primas da literatura, da música ou do teatro que conseguissem evitá-los. Convém, aliás, lembrar que alguns dos maiores criadores mundiais do princípio do século passado foram abatidos nas trincheiras do sangue e do terror ou então dizimados pela pneumónica. A cultura ajuda hoje a recordá-los mas muito pouco nos diz já sobre o vazio trágico que as suas mortes representaram para o mundo.
A Comissão Europeia fala agora de uma Nova Agenda para a Cultura, que deve desafiar os líderes europeus a fazerem mais, designadamente através da cultura e da educação, e a construírem sociedades coesas que consigam dar uma visão atractiva da União Europeia.
Tudo isto, mesmo idealmente, poderá acontecer se os orçamentos previstos para estes fins não forem entretanto reafectados para a aquisição de materiais de contenção, confinamento e repressão que evitem a circulação de refugiados, a travessia de fronteiras e a sua instalação nos países que os aceitam.
Os dados do Eurostat demonstram claramente que mais de um terço dos europeus não participam em actividades culturais. Também por isso, é urgente desenvolver a participação cultural, batalha que não pode deixar de privilegiar as populações mais jovens, por serem uma garantia de futuro que não pode ser nunca subestimada.
Acreditam os responsáveis europeus que esta deve ser a via que une e não a que divide. No entanto, está provado e demonstrado que a fragmentação do mercado, o insuficiente acesso a meios financeiros e a falta de condições contratuais que promovam a criação de novas obras continuam a prejudicar os sectores criativos e a deprimir e isolar os criadores culturais. Como irá a Nova Agenda Cultural Europeia lidar com estas circunstâncias e combater os seus inevitáveis danos?
A cultura não evita guerras nem debela conflitos estruturais, mas acentua em todos nós a responsabilidade de sermos humanos e de fazermos dessa condição a ponte que nos permite evitar os caminhos de fogo, de medo e de cinza para os quais a vida e o mundo tantas vezes nos empurram sem remissão ou remédio.
Escritor, jornalista e presidente da SPA