Pós-verdade: "Kosovo agradece os seis mil soldados portugueses que ajudaram à paz"

Pós-verdade ou a política da pós-verdade, isto é, política pós-factual, é a situação em que o debate público se limita a provocar emoções, evitando factos importantes, assim como detalhes, com repetição de elementos do discurso ou da escrita que procuram atingir um determinado objectivo, particularmente político, enquanto a refutação de tais afirmações com factos concretos é ignorada. É, portanto, a criação de uma atmosfera em que factos objetivos, a verdade, portanto, têm um impacto muito menor na formação da opinião pública que opiniões pessoais e individuais, emoções e reacções públicas. Desta forma, contornando, ou mesmo ignorando a verdade, os preconceitos são muitas vezes encorajados, sendo o melhor alimento para as paixões e emoções que bloqueiam a razão. Os seguintes termos podem também ser usados ​​para explicar a "pós-verdade": a habilidade de mentir ou até mesmo a arte de mentir (The Economist). Na Sérvia e em alguns outros países, este tipo de formação da opinião pública é também conhecida como "Goebbels". Já vão sendo escritos livros (Ralph Keyes, The Post-Truth Era) sobre a era da pós-verdade, onde a desonra, a fraude e o engano reinam. A política da pós-verdade era habitualmente associada a sociedades anti-democráticas e totalitárias, mas tem vindo a tornar-se um conceito sociológico cada vez mais importante nas sociedades democráticas, levantando toda uma série de questões essenciais sobre a democracia moderna, as suas limitações e até mesmo a sua crise.

E é precisamente disso que trata o artigo publicado no V. estimado jornal a 7 de Outubro deste ano, intitulado "Kosovo agradece os 6.000 soldados portugueses que ajudaram à paz", de Ylber Kryeziu. Os factos dizem algo completamente diferente.

Nomeadamente, a Sérvia e os sérvios que permaneceram na província sérvia do Kosovo e Metohija, no sul, são especialmente gratos aos soldados portugueses (e italianos) que permitiram que esses sérvios sobrevivessem e preservassem parte das suas igrejas e mosteiros cristãos naquela área. (Efectivamente, desde que a KFOR assumiu a responsabilidade pela segurança da zona, devido à retirada da polícia e do exército sérvios, em apenas três meses 78 igrejas e mosteiros cristãos foram destruídos; até mesmo cemitérios foram destruídos!) Assim, os soldados portugueses, a quem os sérvios apenas elogiam, "ajudaram à paz" mas aos sérvios, protegendo-os dos horríveis atentados levados a cabo pelos albaneses, que não só os mataram, como também retiraram órgãos que colocaram à venda no mercado mundial, assunto sobre o qual o suíço Dick Marty escreveu num relatório oficial que apresentou à Comissão de Assuntos Jurídicos e Direitos Humanos do Parlamento Europeu (Tratamento desumano de pessoas e alegado tráfico de órgãos humanos no Kosovo). Simultaneamente, o maior número de voluntários para o chamado "Estado Islâmico", segundo dados oficiais, veio do "Kosovo". Felizmente, Portugal e a Europa não partilham, como diz o artigo, "esses mesmos valores europeus".

O artigo afirma que "o povo do Kosovo se destaca pelos valores humanísticos como os direitos humanos, a democracia e a justiça social". Para além do que foi dito, há que acrescentar: Os sérvios vivem nesta região em enclaves (reservas), muitas vezes vedados com arames, e essas reservas são protegidas por portugueses e outros soldados! De quem? Esta questão é claramente evidenciada pelo General português Raúl Cunha, Comandante do Exército da UMNIK no Kosovo de 2005 a 2009, no seu livro: KOSOVO - A Incoerência de uma Independência Inédita. Assim, este comandante português, responsável por todas as tropas estrangeiras, e claro, também pelos 6000 portugueses, afirma exactamente o oposto do que é dito no referido artigo.

Acerca das razões pelas quais o "Kosovo" não é membro da ONU, o autor escreve que "os reconhecimentos de outros países consolidaram a independência do Kosovo". Em primeiro lugar, questiono, então, por que razão "o presidente" e "o governo do Kosovo", e inclusivamente algumas grandes potências, estão constantemente a solicitar que a Sérvia reconheça a independência do "Kosovo"? Em segundo lugar, vários dos Estados que inicialmente reconheceram esta independência unilateral (alguns sob pressão, alguns por causa de subornos, alguns por engano), retiraram o seu reconhecimento (só nos últimos anos foram 17 Estados) quando perceberam que estavam errados, sendo que vários Estados retiraram o seu reconhecimento quando souberam que o governo anterior havia sido subornado. Por outro lado, se fosse levado em consideração o número de cidadãos dos países que não reconheceram a independência do "Kosovo", então ficaria claro que é mais de 2/3 do planeta.

A maior inverdade, se é que é possível a gradação de uma mentira, é que, como se afirma no artigo, "o Tribunal Internacional de Justiça, em Julho de 2010, confirmou que a independência do Kosovo está em conformidade com o Direito internacional"! Isto realmente requer que a verdade seja reposta, e esta é:

A Assembleia Geral da ONU perguntou ao Tribunal se "a declaração unilateral de independência do Kosovo" estava em conformidade com o "Direito internacional", e a resposta do Tribunal, na opinião consultiva, afirmou que tal declaração "não violava" o Direito internacional.

Para leigos e intérpretes mal-intencionados, isto gerou a alegação de que, uma vez que a referida declaração não violou o Direito Internacional, significa que está em conformidade com este! Tal alegação é juridicamente infundada e, portanto, imprecisa, incorrecta, ou seja, falsa. Os factos são os seguintes:

1. O título do Parecer Consultivo não foi formulado para avaliar a Declaração unilateral de Independência do Kosovo, mas apenas se refere à Declaração unilateral de Independência no que diz respeito ao Kosovo (se esta é relevante para o Direito Internacional ou não);

2. "A Declaração de Independência é uma tentativa de determinar o estatuto final do Kosovo";

3. O Tribunal "chegou à conclusão" de que as Instituições Provisórias do Governo-Autónomo, instituições essas que foram formadas com base na Resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU e no Quadro Constitucional da UNMIK, não adoptaram um acto unilateral sobre a Declaração de Independência do Kosovo, mas que os autores da Declaração foram indivíduos que agiram na qualidade de representantes do povo do Kosovo fora do quadro da administração interina;

4. Na sua decisão, o Tribunal afirma que o âmbito limitado da questão relativa à legalidade da Declaração de Independência não incluiu a questão de saber se o Direito internacional autoriza a implementação da secessão, isto é, alcançar-se o efeito da secessão. A questão colocada não está relacionada com a questão de saber se o Kosovo adquiriu o estatuto de Estado (sic!);

5. O próprio Tribunal declarou que "a jurisdição consultiva não é um recurso legal que possa ser usado pelos Estados", mas um meio pelo qual a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança, bem como outros órgãos da ONU e organismos especificamente autorizados pela Assembleia Geral, de acordo com o Art. 96 (2) da Carta, podem obter o parecer do Tribunal Internacional de Justiça como um auxílio para as suas actividades;

6. O Tribunal observa que "a declaração foi escrita em duas folhas de papel e foi lida, votada e, em seguida, assinadapor todos os representantes que estavam presentes. Não foi submetida ao Representante Especial do Secretário-Geral e não foi publicada no Diário Oficial das Instituições Provisórias do Governo-Autónomo do Kosovo. "O Tribunal considera que os autores da Declaração não agiram, nem pretenderá agir, na qualidade das instituições criadas e autorizadas a funcionar dentro desse ordenamento jurídico, pelo contrário, decidiram adoptar uma medida cujo significado e efeito extrapola aquele ordenamento";

7. O Tribunal afirmou que "em parte alguma do texto original da Declaração (que é o único texto autêntico) existe uma disposição de que a Declaração é obra da Assembleia do Kosovo. A expressão "Assembleia do Kosovo" surge antes da Declaração apenas na sua versão traduzida em Inglês e Francês (sic!);

8. O Tribunal observa ainda que o Representante Especial do Secretário-Geral da ONU tem poderes para classificar os actos ilegais das Instituições Provisórias como tais, como actos que não estão em conformidade com o Quadro Constitucional, para dissolver a Assembleia, para convocar novas eleições... e afirma que o Representante Especial "seria obrigado a tomar medidas em relação aos actos da Assembleia do Kosovo que considerasse ultra vires", concluindo que o Representante Especial não reagiu à Declaração em absoluto;

9. Quando o Tribunal Internacional de Justiça chamou os autores da Declaração a "fornecerem informações sobre a questão levantada", eles submeteram-na com um memorando do "Governo da República do Kosovo", apesar do Parecer Consultivo não mencionar "República do Kosovo" em lugar algum, mas apenas "os autores da Declaração unilateral de Independência";

10. O Tribunal salientou que o Direito Internacional Geral não proíbe as declarações de independência e que tais declarações existiram nos "séculos XVIII, XIX e início do século XX", sendo que tais proclamações por vezes resultaram na criação de um novo Estado e outras vezes não;

11. O Tribunal também analisou a Resolução 1244 (de 1999) do Conselho de Segurança da ONU e salientou três elementos relevantes: (1) que "todo o poder legislativo e executivo respeitante ao Kosovo, incluindo a administração da justiça" é confiado à UNMIK e é exercido pelo Representante Especial do Secretário-Geral da ONU; (2) a Administração Provisória do Kosovo "suspende temporariamente o exercício da autoridade da Sérvia decorrente da soberania continuada sobre o território do Kosovo..."; (3) que a Resolução 1244 "estabelece claramente um regime temporário; não podendo ser entendida como o estabelecimento de um quadro institucional permanente no território do Kosovo. Esta resolução atribui à UNMIK apenas o mandato de contribuir para a solução desejada, a qual seria resultante das negociações para o futuro estatuto do Kosovo, sem prejuízo para o resultado do processo de negociações.

Simplificando resumidamente, o Tribunal afirmou o seguinte: se um grupo de cidadãos numa qualquer parte de qualquer país do mundo emite uma Declaração de Independência, isso não é contrário ao Direito Internacional, porque não é juridicamente relevante, isto é, tendo em conta os autores dessa declaração (não é um acto de uma assembleia, de um governo, etc.), assim como as regulamentações pertinentes (materiais e formais), isso não pertence ao mundo do Direito, mas sim ao mundo da política.

E é por isso que várias autoridades renomadas do campo do Direito Internacional classificam a Declaração unilateral de Independência do Kosovo como uma "declaração de independência fora do Direito Internacional " ou "uma folha de papel assinada por um grupo de pessoas sem qualquer observância do Direito Internacional". O Tribunal também declarou inequivocamente em vários lugares que os autores da Declaração agiram fora de qualquer ordem legal, nacional e internacional, e que a sua Declaração e (implicitamente) qualquer acto semelhante não pode levar a uma resolução final sobre o estatuto do "Kosovo", contrário à Resolução do Conselho de Segurança UN 1244, ao Quadro Constitucional da UMNIK e ao processo de negociação no qual as autoridades da R. Sérvia têm um papel inevitável.

O reconhecido e estimado Professor de Direito Internacional português, Fausto de Quadros, escreveu exatamente sobre isso, negando aos albaneses do Kosovo o direito à secessão unilateral (Fausto de Quadros, Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa: Portugal não pode reconhecer o Kosovo, Sol, 19 de Abril 2008).

O entrevistado Ylber Kryeziu afirma que: "Durante a Segunda Guerra Mundial, os albaneses ajudaram muitos judeus que deixaram a Europa Central e do Sul, providenciando-lhes comida e abrigo"! Na Segunda Guerra Mundial, a Sérvia foi dividida em zonas de ocupação pela Alemanha, Hungria, Bulgária e a Itália. A parte do sul da Sérvia (não tinha o estatuto de província, esta foi criada pelo governo comunista), que é chamada de "Kosovo" no artigo, estava sob o domínio directo da Itália fascista. A grande maioria dos albaneses defendia o nazismo-fascismo de Hitler e Mussolini. Foi nessa época que a população não-albanesa foi expulsa daquela zona de ocupação. Os albaneses do Kosovo eram membros do 1º Batalhão do 2º Regimento e, posteriormente, do 28º Regimento da Divisão Handshar (a única divisão da Waffen-SS que não era composta por alemães) e evidenciaram-se por cometer crimes de guerra em Srem (parte da Sérvia) e na Bósnia: "Pela ferocidade e pelas formas de execução, ultrapassavam os seus mentores; essas pessoas massacravam tudo o que encontravam pela frente que não usasse fez", destacando-se principalmente no assassinato de sérvios e judeus (dados disponíveis até na Wikipedia). Em Abril de 1944, eles entraram para a 21ª Divisão Skenderbeg.

Após o final da guerra, o governo comunista emitiu um decreto proibindo o retorno dos sérvios expulsos daquela área pelos nazistas albaneses do Kosovo!

E, finalmente, o entrevistado afirma que, em 1999, a NATO evitou "massacres sistemáticos e massivos de albaneses do Kosovo"... Lisboa foi a única capital de um membro da NATO que emitiu uma declaração contra o bombardeamento da RF da Jugoslávia (Sérvia e Montenegro). Muitos albaneses leais refugiaram-se do bombardeamento na Sérvia central, onde ainda hoje vivem normalmente, e um número não reduzido de outros albaneses leais à Sérvia permaneceram naquela província e foram mortos, juntamente com vizinhos e amigos sérvios, pelo KLA albanês (inicialmente os EUA colocaram o KLA na lista de terroristas internacionais, para mais tarde serem "amnistiados" por razões geopolíticas). A propósito, eu pessoalmente não fui apenas Professor de Direito de muitos albaneses, mas também mentor na preparação de teses de mestrado e doutoramentos (por exemplo, o do Prof. Dr. Hamdi Vranići). Por fim, as bombas da NATO com urânio empobrecido, lançadas especificamente sobre o "Kosovo", poluíram tanto o meio ambiente que muitos albaneses do Kosovo ainda hoje morrem de cancro (alguns vêm a Belgrado para se tratar), como também soldados italianos da UMNIK, facto este que, após vários processos, a Itália acabou por admitir.

Acrescentemos que o Reino de Portugal e do Algarve e o Reino da Sérvia partilham os valores europeus desde o estabelecimento das relações diplomáticas em 1882 até aos dias de hoje.

Embaixador da Sérvia em Portugal

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG