Pedir desculpa pela escravatura? Três razões para não ir por aí

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A alusão de Marcelo Rebelo de Sousa a iniciativas do marquês de Pombal para abolir a escravatura indignou certos sectores da nossa esquerda, em particular os mais ligados às Ciências Sociais e Humanas. Quatro dias após essa alusão, o antropólogo Miguel Vale de Almeida escreveu um texto sugerindo a Marcelo que pedisse desculpa pelo papel de Portugal "no sistema escravocrata e nas suas formas substitutas". Várias pessoas vieram publicamente secundar e reforçar a sua sugestão. Em minha opinião Portugal deve torcer o nariz a estas propostas, por várias razões:

1. A sugestão de Vale de Almeida parte do pressuposto de que o tráfico transatlântico de escravos e a correspondente escravidão colonial são assunto europeu (e americano), não africano. No seu texto não se menciona a participação africana no processo; só se referem "o Estado português e parte das suas elites comerciais" como "actores centrais no comércio de escravos". Ora, importa perceber que, excepção feita a episódios de captura nas primeiras viagens de descobrimento, o tráfico foi uma prática que surgiu e se manteve por vontade convergente de traficantes portugueses (e de outras nações ocidentais) e chefias africanas. A ideia de que apenas uma das partes daquela odiosa transacção - a ocidental - seria responsável pelo que ali acontecia é ideia herdada de filósofos e abolicionistas de finais do séc. XVIII, mas é errada e, paradoxalmente, menoriza os próprios africanos que são apresentados como ingénuos, fracos, inferiores ou incapazes, quando provavelmente foram pessoas tão ou mais racionais e argutas do que os brancos que as procuravam para negociar.

A verdade é que, à época, e mesmo que o quisessem, os ocidentais não tinham geralmente meios para forçar os habitantes de África a participar num comércio contra vontade ou contranatura. De um ponto de vista histórico não há, portanto, razão para que Portugal peça unilateralmente desculpa por uma relação que, não obstante a sua desumanidade, foi mutuamente assumida. Aliás, a História não é juiz nem tribunal. Mas, se acaso o fosse, ainda assim haveria pouca matéria para julgar, pois as práticas que agora execramos e punimos não eram entendidas como crime na altura.

2. A criminalização da escravidão e do tráfico de pessoas foi uma das grandes conquistas políticas, jurídicas e morais dos últimos 200 anos, algo que ficámos a dever a quem por isso se bateu. Mas antes de finais de Setecentos nenhuma dessas coisas era crime em nenhuma parte do mundo. Podemos achar chocante que assim fosse mas é essa a verdade histórica. Homens justos e bem formados, de todas as cores e latitudes, considerariam a escravatura infeliz e lamentável, mas ela era admitida, se não incentivada, pelo costume, pela religião, pela política e pela lei.

Dirão: mas a escravatura era considerada crime pelos próprios escravos. Seria? Onde estão os documentos que consistentemente o provem? Eu não os conheço. Conheço, sim, muitos factos que indicam o contrário. Na verdade, raramente sabemos o que os escravos pensavam. Mas sabemos como agiam. Quem estudar a história da escravatura encontrará escravos e libertos que tinham os seus próprios escravos; escravos que uma vez libertados iam traficar escravos na costa de África; escravos que fugiam ou se revoltavam e que, uma vez livres, possuíam escravos nos territórios que dominavam. Não parece, portanto, que, até finais do século XVIII, os escravos considerassem a escravatura como um crime e que agissem em conformidade.

É, por isso, errado julgar as pessoas de outro tempo à luz dos nossos sentimentos e conceitos. E se não podemos aplicar a classificação de crime a práticas que, à época, não eram classificadas como tal, também não podemos onerar e responsabilizar os actuais descendentes de putativos criminosos que, na verdade, ainda o não eram. A História não é uma plasticina que possamos moldar à medida das nossas conveniências ou convicções. Mas se, por absurdo, decidíssemos criminalizar determinadas práticas retroactivamente, quais e como escolheríamos?

3. Entendamo-nos bem: a escravatura dos africanos foi uma forma particularmente violenta, cruel e injusta de exploração humana. Um drama de grandes proporções e implicações. Basta ter visto filmes como Amistad ou 12 Anos Escravo para ficar a perceber todo o horror da coisa. Lamentavelmente, na triste contabilização dos horrores do passado, o tráfico transatlântico não é caso único nem na dimensão, nem nas consequências, nem mesmo na duração. Já lembrei, a propósito deste tema, que os ataques dos nómadas da estepe eurasiática às civilizações agrárias da periferia duraram, com intervalos, cerca de dois mil anos e provocaram muitos milhões de vítimas. Servirão eles para que a Rússia, o Irão ou a China exijam da actual Mongólia um pedido de desculpas? É absurdo. Como seria absurdo se o Médio Oriente em peso exigisse ao Uzbequistão que pedisse desculpa pelas campanhas de Tamerlão, causadoras da morte de 17 milhões de pessoas.

Exemplos destes não faltam, infelizmente, porque a história humana é feita de muita atrocidade. O ideal seria que pudéssemos corrigir males passados, ou melhor ainda, que nunca tivessem acontecido. Mas não temos esse poder e se o tivéssemos se calhar não saberíamos usá-lo. Já seria muito bom que os Estados reparassem as barbaridades e injustiças actuais, as que estão ao alcance da sua mão. Ir para além disso, culpabilizar um povo por acontecimentos ocorridos há centenas de anos é um princípio de responsabilização retroactiva que não tem sentido. Ou melhor: tem um sentido mas não o que parece inocentemente ter. Isso porém será tema para outro artigo. Nele mostrarei de onde vêm e para onde querem ir estas exigências de pedidos de desculpa pela escravatura, e insistirei para que Portugal não vá por aí.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Historiador e romancista

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