Pascal, um alemão em Lisboa
A ficha clínica deste paciente seria desinteressante, não fosse reveladora do estado das coisas em Portugal. Trata-se, em autodiagnóstico, de um caso de dupla personalidade cultural. Ora reajo como um alemão, rigoroso, legalista e cumpridor da ordem, com uma forte consciência dos meus direitos e, sobretudo, uma exacerbada noção das obrigações dos outros. Ora sobrepõem-se os genes e os hábitos culturais portugueses, o que resulta numa personalidade descontraída, que evita conflitos e reage aos abusos e atropelos que sofre com um "deixa lá" ou "que se lixe".
Os atropelos a que os portugueses se sujeitam são para entender também de forma literal. Basta pôr um pé na passadeira, quando passa um carro, sem abrandar, que quase me arranca o saco de compras, a filha da mão ou o cão da trela (como ando muito a pé, acontece-me várias vezes por semana). Como alemão, tendo a sacar do telemóvel para tirar uma fotografia do carro ou a apontar a matrícula para apresentar queixa. Da próxima vez aquele condutor pode matar alguém e é minha obrigação cívica impedi-lo. Ou então reajo à portuguesa. Encolho os ombros. Verbalizo em três palavras que o condutor é um descendente direto, pela via materna, de alguém dedicado a distribuir favores na posição horizontal ou noutros graus de inclinação ao gosto do freguês.
Esqueço o episódio e sigo com a minha vida, que gozo enquanto dura.
Todos os dias em Portugal tenho uns achaques alemães ou portugueses.
Domingo, sentado à mesa no jardim, dia de descanso de acordo com a rigorosa lei do ruído portuguesa. Os vizinhos da frente põem uma serra elétrica a funcionar. Ligo logo à polícia ou viro-me para a minha mulher e grito qualquer coisa como "também temos tratar dos troncos velhos do nosso jardim" e "vamos dar um passeio para os vizinhos trabalharem à vontade"?
Às vezes, felizmente raras, ganha o lado alemão. "Agradeço que apanhe os excrementos do seu cão." Ou "faça o favor de tirar o seu carro de frente do meu portão". As reações tendem a ser de surpresa ou indignação: "O quê?", "meta-se na sua vida!" ou "vou só ali ao café, são só cinco minutos". Ao que o alemão em mim insiste: "Não tenho de andar nos cafés da rua à procura de quem bloqueou a minha garagem."
Mesmo assim, há quem vire costas e finja que não ouviu. É nessas ocasiões que o meu alemão veste uniforme e dispara com voz de pelotão de fuzilamento: "Tire já o carro daqui ou chamo a GNR e apresento queixa." Resulta sempre. Os vizinhos que já me ouviram dar ordem de execução por estacionamento ilegal tendem a nunca mais falar comigo, a baixar os olhos quando me veem ou a bater continência.
Este é também o equilíbrio difícil entre viver num país meticulosamente organizado, assético, cheio de pessoas chatas e muita chuva e frio. Ou de aceitar que se continue a atirar beatas para o chão, a mandar as regras mais elementares à fava e a ter sempre uma palavra e um sorriso fácil nos lábios. Quando estive a viver em Frankfurt, e só vinha de seis em seis meses a Portugal, a minha mulher e eu olhávamos pasmados um para o outro quando chegávamos a Lisboa.
"Incrível, as pessoas são tão simpáticas e prestáveis", comentávamos.
Mas, no extremo, o "deixa fazer, deixar passar" no trato social em Portugal é terreno fértil para abusos, para a incompetência, desigualdade, a corrupção e o caos. Tal como o civismo militante torna a Alemanha tantas vezes tão desagradável para se viver. Felizmente, posso encarar esta espécie de transtorno dissociativo de identidade como um fenómeno pessoano. Ora escreve um autor alemão ora um autor português. Infelizmente, as duas personalidades não são conciliáveis.
O resultado seria tão inverosímil como Pascal, um ex-cabeleireiro alemão e autoproclamado rei da música pimba, a cantar fado de Coimbra.
Ou Fernando Mendes do Preço Certo a fazer de oficial da SS.