Os camiões e os barcos da morte. Há coisas em que a Europa nos envergonha

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Quando se tranca a porta de um contentor frigorífico, as pessoas que lá estejam dentro correm o risco de morrer em poucas horas, de frio se a refrigeração estiver ligada, ou sufocadas se não estiver. Do mesmo modo, quando dezenas de pessoas embarcam num bote de borracha sobrelotado e com pouco combustível, correm sérios riscos de não chegar ao destino ou de acabar atiradas ao mar. Sabemos porque, como na Cantata da Paz de Sophia, vemos, ouvimos e lemos.

É muito difícil imaginar que desespero pode levar um ser humano a aceitar estes riscos e que degradação moral e desprezo pela vida pode levar outro a fazer desta atividade o seu modo de vida. Mas o fenómeno de contrabando de pessoas para fins laborais, extração de órgãos, servidão doméstica e exploração sexual não é uma atividade da qual a humanidade esteja perto de se ter libertado.

Desde que as Nações Unidas começaram a recolher dados, o número de vítimas identificadas não parou de subir, não apenas porque mais países os reportam, mas também - e é um importante indicador - porque aumenta o número de vítimas reportadas por país. Mas as 25000 vítimas reportadas à ONU são apenas uma pequena ponta do icebergue.

Se não podemos saber a real extensão do fenómeno que conduz a casos como o dos 39 chineses encontrados mortos esta semana num camião no Reino Unido, podemos saber, mesmo a partir da pequena quantidade de casos detetados, algo mais sobre esta sinistra atividade.

Um estudo recente de Ella Cockbain e Kate Bowers, do University College of London, publicado na revista Crime, Law and Social Change (de acesso aberto, aqui) partiu dos casos registados no Reino Unido para concluir que ser mulher aumenta 75 vezes a probabilidade de ser traficada para fins sexuais, vir de Africa aumenta 66 vezes e vir da Asia 11 vezes a probabilidade de ser traficado para servidão doméstica em relação a vir da Europa e que ser homem aumenta a probabilidade de ser traficado para fins laborais. Mas também apontou para que haja um enviesamento na atenção das políticas ao fenómeno do tráfico de pessoas. O que mais tem conduzido a política internacional e chocado a opinião pública é o tráfico para fins sexuais, mas mais de metade das pessoas traficadas tinham-no sido para fins laborais. O que nos lembra que a criminalidade organizada para o tráfico de pessoas e a emergência social em muitos países do mundo que empurra as pessoas para a emigração clandestina andam de mãos dadas.

Os Protocolos das Nações Unidas relativos à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas e ao Contrabando de Pessoas, estabelecem hoje um quadro internacional a partir do qual os países são encorajados a prevenir e punir este tipo de crime. Saliente-se, a este respeito, que Portugal aparece num dos mais importantes relatórios sobre a matéria, o Relatório Anual do Departamento de Estado dos EUA, como um dos países que tem melhores práticas de combate ao tráfico de seres humanos. Mas os protocolos das Nações Unidas partem de um importante requisito para a definição de contrabando e tráfico, o de que quem "ajuda" a pessoa ilegal tem benefício material por isso.

O que é incompreensível é a abordagem da Europa ao fenómeno. A UE não adere ao espírito dos protocolos da ONU e não separa claramente o tráfico de seres humanos da ajuda humanitária a pessoas traficadas. A Directiva 2002/90/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2002 usa um conceito que nos envergonha e permite criminalizar não apenas o crime organizado e o tráfico mas até a ação humanitária.

É certo que a Diretiva também permite aos Estados-membros excetuar a ajuda humanitária e não impor sanções nesses casos. Mas, segundo um relatório de dezembro de 2018 do Parlamento Europeu, só quatro países usam essa exceção (Alemanha, Irlanda, Luxemburgo e, orgulhemo-nos, Portugal).

Para 24 países da União Europeia (até ao Brexit) salvar uma pessoa da morte no mar e entregá-la em terra por razões humanitárias é um crime equiparável a atirá-la para ganhar dinheiro para um camião ou um barco da morte.

Há coisas em que a Europa nos envergonha.

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