O golaço de Marega

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Tudo já foi dito e escrito sobre a corajosa atitude de Marega no último jogo entre o Porto e o Vitória de Guimarães, para o campeonato português de futebol. E, no entanto, é imperioso continuar a falar (e a escrever). Este texto pretende ser uma modesta achega nesse sentido.

Como adepto do Petro-Atlético de Luanda (em memória ao velho Atlético de Luanda, clube ligado à história do desporto e do nacionalismo angolano, que o meu saudoso pai chegou a treinar) e também do glorioso Sport Lisboa e Benfica (outro clube do coração do meu pai), gostaria que Marega não tivesse marcado aquele golo que deu a vitória ao seu atual clube, deixando assim o "meu" Benfica numa situação desconfortável. Mas o golaço que ele marcou logo a seguir fez-nos lembrar, a mim e a (quase) todos, que o futebol é só um jogo e que há coisas muito mais importantes na vida.

De facto, o golaço de Marega alertou-nos que chegou a hora de enfrentar e vencer um dos grandes e persistentes desafios que a humanidade continua a ter pela frente: o racismo. E que nesse jogo só pode haver um clube: o clube dos antirracistas. Verdadeiramente descomplexados, sinceros, plenos e unidos.

Em primeiro lugar, esse desafio não admite tergiversações de nenhuma espécie, trocadilhos conceituais, "jogos de linguagem" ou taticismos. Racismo é racismo. Não é "opinião", "estupidez", "ignorância" e outros termos que apenas contribuem para atenuar a sua boçalidade e gravidade. A sua condenação deve, pois, ser inequívoca e vocalizada. Os silêncios táticos são indesculpáveis, pois não somente o desculpabilizam como o encorajam.

A propósito, li na imprensa portuguesa que, quando este episódio foi abordado pela primeira vez na Assembleia das República, os parlamentares dos partidos de direita se mantiveram em silêncio. Não tenho dúvidas: se o referido silêncio é obviamente explicável no caso do único (?) deputado de extrema-direita no parlamento português, já no que diz respeito à direita dita liberal (até quando?), tal silêncio verdadeiramente "ensurdecedor" foi um claro e mero recurso tático, precisamente para tentar não perder eleitores para a extrema direita. É assim - lembro - que medram os ovos da serpente.

Cada um deve ter orgulho da sua própria cor, mas as "raças" não interessam para nada

Em segundo lugar, o combate ao racismo não se confunde com xenofobia. A discussão sobre se Portugal é ou não um país racista, por exemplo, parece-me pouco produtiva, para não dizer inútil. Não sei se, hoje, haverá algum país "institucionalmente" racista, no sentido de a discriminação com base na "raça" estar inscrita na constituição e nas leis. Sendo certo e inequívoco, contudo, que em todos (digo bem, todos) os países há sentimentos, manifestações e práticas racistas, a luta deve ser elimina-los e superá-los, ali onde tais fenómenos existirem e qualquer que seja o seu sentido.

O expresso no parágrafo anterior não anula, entretanto, uma outra realidade: há países onde o racismo institucional acabou, mas nos quais, na prática social em sentido amplo, persistem uma série de práticas que configuram aquilo a que se chama "racismo estrutural". Os casos mais flagrantes que conheço são os dos Estados Unidos e do Brasil. Mas Portugal não escapa, também, a essa realidade. Não é ocasional, por exemplo, que tenha de se "festejar" o facto de o país, mais de 40 anos depois do 25 de Abril, ter finalmente uma ministra e três parlamentares negras. E alguém já reparou que a televisão portuguesa (como a brasileira) é excessivamente branca e loira?

A verdade histórica é que o "racismo científico" foi criado pelos europeus no século XVIII. Por isso, nos territórios onde, hoje, as elites dominantes são europeias ou de origem europeia, as crenças e práticas racistas (anti - negros) persistem. Ainda há dias, um consultor do primeiro ministro britânico demitiu-se após ter afirmado - indignemo-nos! - que os negros possuem um QI inferior ao dos brancos.

Quanto aos territórios dominados por elites negro-africanas (a precisão impõe-se porque, assim como há europeus negros, também há africanos brancos), alguns deles, como Angola, Moçambique e África do Sul, mas não só, deram, desde que aquelas assumiram o poder, bons exemplos de integração racial, a todos os níveis. Mas isso não significa, naturalmente, a inexistência de tensões raciais, que é preciso discutir abertamente, com o propósito - diga-se - de superar todas as formas de discriminação e não de perpetuá-las ou, o que seria o mesmo, mimetiza-las.

O golaço de Marega veio lembrar-nos: cada um deve ter orgulho da sua própria cor, mas as "raças" não interessam para nada.

Jornalista e escritor angolano. Diretor da revista ÁFRICA 21

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