O fantasma covid-19 na América Latina
A humanidade padece de um grave problema que, adaptando a famosa frase de Marx e Engels, seria "um fantasma que percorre... o mundo: o fantasma da covid-19. Todas as forças da velha Europa... os novos e velhos Estados do Oriente e Ocidente uniram-se na santa cruzada para acossar esse fantasma".
A adaptação da dita frase parece mais digna de nota porque a primeira grande vítima desse "fantasma" foi a China, o maior Estado comunista que ainda existe. Logo foi a velha Europa, onde o vírus causa estragos nos melhores sistemas de saúde pública do mundo como em Itália, Reino Unido e Espanha. Agora o horror instala-se nos Estados Unidos, o mais poderoso e extraordinário Estado capitalista do século XXI. A América Latina também está a ser afetada, principalmente o Brasil, a eterna promessa de potência global. Ainda falta saber se todas as forças se unirão numa santa cruzada para deter a pandemia.
Por agora, esse fantasma não tem quem o detenha. As vacinas, os medicamentos ou as terapias que se experimentam não confirmam a sua eficácia. Neste caos, a Organização Mundial de Saúde recomenda medidas para a sua contenção e muitos Estados adotaram-nas segundo as suas tradições, culturas e os seus recursos. É curioso que alguns destes métodos sejam praticados desde épocas muito antigas como o isolamento para tratar a lepra, mencionado na Bíblia, e a quarentena utilizada em Veneza durante a peste negra do século XIV.
A maioria dos meios de comunicação concentram as suas informações no problema de saúde e as suas múltiplas consequências, mas a causa do problema é ignorada. E a expansão da covid-19, em pouco mais de quatro meses, causou mais desempregados do que mortos, mais fome que contágios, mais dívidas que recuperados, todos eles debilitando a estabilidade dos sistemas democráticos.
Na maioria dos países da América Latina observa-se o aumento de conflitos políticos, económicos e sociais a um ritmo e com uma magnitude de que não há memória. A quase totalidade dos governos latino-americanos impôs de forma imediata, alguns pela primeira vez na sua história, o confinamento de toda a população em casa, restringiu e paralisou a maioria das indústrias, o comércio, os serviços públicos e privados, assim como os encontros sociais, as manifestações públicas, entre outros, com a paralisação quase total do sistema produtivo cujos efeitos são desconhecidos. Estas restrições e exceções políticas foram as mais extremas que os governos da região tomaram desde a restauração da democracia. A cidadania aceitou ceder a sua liberdade e interesses por temor a uma elevada mortalidade, consciente de que se os sistemas de saúde são insuficientes e incapazes para atender a procura existente, muito menos capacidade terão no caso de aumento dessa procura.
A precariedade como denominador comum
As medidas excecionais implementadas na América Latina explicam-se pela falta de medicamentos, equipamentos, recursos humanos científicos, médicos, paramédicos e enfermeiros, assim como pela escassa infraestrutura de hospitais com unidades de cuidados intensivos e laboratórios adequados. No entanto, estas deficiências e carências estruturais já existiam desde há muito e a recente epidemia de dengue, por exemplo, confirmou todas essas limitações. Segundo a Organização Pan-americana da Saúde foram reportados nas Américas, entre 2019 e março de 2020, mais de 3 699 000 casos de dengue, incluindo 1656 falecimentos. Estes números são imensamente superiores aos da covid-19! Esta epidemia evidencia que a crise é anterior à pandemia.
A falta de infraestruturas, de recursos especializados e a carência de políticas públicas de saúde adequadas, são as verdadeiras realidades que obrigam os governos a impor medidas tão drásticas. E considerando que, em alguns países, estas decisões foram adotadas ao estilo "manumilitari", os seus efeitos foram a concentração de decisões e recursos financeiros, poucos espaços para debates, consensos ou a participação de outros níveis de governo territorial ou organizações sociais a regressarem a práticas que caracterizavam as ditaduras do passado.
Em alguns casos, a crise política agrava-se pelo efeito da corrupção associada à impunidade. As compras de equipamentos e materiais médicos profusamente denunciadas demonstraram que os sistemas de compras públicas e os organismos de controlo são vulneráveis e estariam governados e influenciados por estruturas corruptas associadas a funcionários judiciais, dirigentes partidários e grupos empresariais que obstaculizam e alteram o propósito das mesmas políticas públicas. Em suma, a causa da crise atual é política e abarca várias dimensões e níveis que superam a problemática da saúde.
O regresso do Estado intervencionista
Neste contexto de crise sanitária e consequente crise económica, os governos, sem distinção de orientação política ou ideológica, decidiram aumentar o endividamento público, reprogramar os orçamentos, modificar as normas de compras estatais, assim como também conceder subsídios, outorgar empréstimos preferenciais, libertar a banca de controlos e propor como incentivo à economia o investimento em obras públicas.
Depois de décadas de esforço para limitar o papel do Estado, decide-se aumentar o intervencionismo. Assim como, decorridos 30 anos de intensos processos de descentralização e autonomias mediante a transferência de competências e atribuições aos municípios e governos regionais, regressa-se à centralização e concentração da gestão pública nos poderes executivos. É evidente que se bem que as medidas excecionais são circunstanciais e em grande parte soltas, e não podem garantir a sua continuidade, estabilidade e o seu êxito, a centralização do poder tem mais probabilidades de continuar na pós-pandemia com as suas consequências para os sistemas políticos democráticos.
Uma abordagem responsável à crise emergente exige reconhecer que, na América Latina, os problemas de saúde pública são anteriores à emergência da covid-19 e que, as atuais circunstâncias e as suas incertas mas negativas consequências exigem que as instituições dos Estados abandonem a gestão de forma excecional, reativa e fragmentada e que enfrentem os problemas estruturais com uma perspetiva sistémica, revendo propósitos, objetivos e métodos para tornar mais eficazes e eficientes as políticas púbicas e garantindo o seu compromisso democrático sustentado na ciência e com a participação ativa da sociedade civil.
À medida que a covid-19 se expande, o fantasma que percorre a América Latina é o fantasma da crise política. Todas as forças democráticas se devem unir para acossar esse fantasma.
Ex-Embaixador do Paraguai em Portugal e Investigador do Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL)