O esplendor do trivial
De que falamos quando nos referimos a Mário de Carvalho? Mesmo que cada um dos seus leitores ("bravos", escreve o autor) e cada uma das leitoras ("pacientes", avança) tenha pleno direito a uma caracterização autónoma, acabaremos todos por fazer escala em dois pontos fulcrais, apercebidos - e desenvolvidos em nome das experiências, as da vida e as da própria escrita - desde os já distantes, mas só no tempo, Contos da Sétima Esfera e Casos do Beco das Sardinheiras: por um lado, um minucioso observador da espécie, sempre capaz de aproximar o trivial do transcendente, de desenhar miradouros inesperados sobre o mais corriqueiro quotidiano; por outro lado, um aventureiro da palavra, fadado para subverter significados imediatos e para nos enriquecer o património vocabular, sem nunca por nunca se deixar resvalar para o academismo ou para uma qualquer voluntária armadilha que faça tropeçar quem lê.
Difícil mesmo - e, assim, despropositado - é colocar em alternativa o contista e o romancista, tanto mais que não há lei nem norma que nos impeça aproveitar plenamente ambos. Acontece que o livro presente, cujo título (Burgueses Somos Nós Todos Ou Ainda Menos) nasce dos versos de Mário Cesariny, alberga onze contos, o que implica colocar em sossego a parcela reservada a obras como Era Bom Que Trocássemos Umas Ideias Sobre O Assunto ou Fantasia Para Dois Coronéis e Uma Piscina. No canto curto, Mário de Carvalho (nativo de Lisboa, em 1944) consegue aquilo que, por mérito, fica reservado a quem domina o modelo: conta-nos uma história rápida, mesmo que albergue anos ou gerações, e deixa-nos, terminada a narrativa, um rodízio de curiosidades e, em muitos casos, um secreto - e inútil - desejo de que as coisas não se ficassem por ali. O espanto, para quem lê, mora nisto: o escritor nunca parece (grande ilusão...) modelar o barro dos superlativos para gerar personagens "maiores do que a vida". Bem pelo contrário, quem opte por não adivinhar a aplicação suada que implica escrever assim, contar assim, "testemunhar" assim, pode, mas não deve, concluir desgraçadamente que o autor se limita a contar um conto e a acrescentar-lhe um ponto, depois de arrumada a fase de pesquisa ou de garimpo ou lá o que é. Há momentos em que temos a certeza, inabalável, teimosa, de já nos termos cruzado com esta ou aquela figura, com as mesmas reações, o mesmo preciso discurso, até com os mesmos segredos, que não ficam por revelar.
Para evitar confusões ou descontextualizações, esclareça-se que, por aqui, não se confunde o trivial (o do título) com o banal, nada disso. Todos os burgueses - e, por favor, esqueça-se qualquer tónica mais ideológica à expressão - que nos aparecem pela frente podiam ser nossos vizinhos, mas nós não saberíamos extrair-lhes os pormenores, as contradições, as angústias. E, ainda por cima, jamais saberíamos enquadrá-los e fazer-lhes justiça, gostando deles ou nem por isso, do jeito singular que é o carimbo distintivo de Mário de Carvalho, tão depressa impiedoso como caridoso, saltador exímio da ironia para a frieza. Como se disse, junta a isso aquilo que se torna um dos seus trunfos: a presença de um verbo, de um substantivo, de um advérbio, que, sozinho, subverte a lógica corriqueira de uma frase. Nesse sentido, e talvez não só nesse, estamos diante de um esteta, de um descobridor, de um brilhante manipulador da Língua (passe a imagem...). Só assim se poderia pintar de esplendor e inesperado aquilo que pode estar bem à frente dos nossos olhos. Mas ver não é só olhar, como se prova.
Burgueses Somos Nós Todos Ou Ainda Menos
Mário de Carvalho
Porto Editora
PVP: 16,60 euros