No pós-covid 19 pense diferente. Pense metropolitano

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Na Área Metropolitana de Lisboa (AML) éramos, em 2018 e a acreditar no Instituto Nacional de Estatística (INE), cerca de 2 milhões e 850 mil habitantes, num território que tem apenas 3015 km2. Em média, seria possível encontrar em cada km2 944 pessoas. Em Portugal continental nesse km2 imaginário estão apenas 110 pessoas.

Afinemos agora estes valores. Dada a rica e complexa geografia da AML os que aqui habitam concentram-se, sobretudo, em áreas mais propícias à ocupação urbana. Dito de outro modo, a população distribui-se numa superfície bastante menor que a indicada.

Pensemos apenas no Parque Natural Sintra-Cascais, no Estuário do Tejo ou ainda no Parque Natural da Arrábida. A área com que ficamos aproxima-se dos 2 570 Km2, disparando a pressão demográfica para os 1100 indivíduos por km2. Finalmente, e para não ser demasiado maçador, como neste território remanescente felizmente ainda se observa uma forte presença agrícola, percebe-se que a ocupação urbana se fará ainda numa parte mais limitada da AML da que estávamos a considerar. Utilizando a superfície e a população do que o INE entende ser as "áreas predominantemente urbanas" da AML obtém-se agora 1500 residentes/km2. O valor médio de Portugal continental para estas áreas é apenas de 440.6, ou seja, cerca de três vezes menor.

O quadro traçado pretende apenas demonstrar que, se a propagação do Covid19 se faz através dos canais respiratórios e oculares, a suscetibilidade ao risco aumenta exponencialmente em contextos com mais elevada densidade demográfica. Aliás, os dados conhecidos até agora parecem confirmar esta ideia já que até 24 de abril a AML tinha 13,5 casos por 10 mil habitantes, com os concelhos menos urbanizados a apresentarem valores quase residuais e a cidade de Lisboa a ultrapassar largamente aquele patamar médio. Se, por exemplo, se subtraírem os valores de Sesimbra, Mafra, Alcochete ou Palmela, o rácio fica muito próximo dos 21,7 casos/10000 indivíduos, que era a média nacional daquele dia. Ou seja, a densidade conta.

Como João Ferrão mostrou de modo cristalino noutro jornal nacional, é útil importar para esta análise os conceitos relacionados com a suscetibilidade, exposição e vulnerabilidade. No caso das áreas metropolitanas percebe-se que o seu grau de exposição é elevado pela relação mais franca com o exterior, designadamente, com países e regiões onde o fenómeno pandémico tem observado maior agressividade. Junta-se-lhe, como se viu, a suscetibilidade de uma densidade demográfica ímpar conjugada com a intensa interação entre fragmentos intra-metropolitanos, fundamento maior da sua própria existência. Esta interação, aliás, nunca cessou mesmo no período de maior confinamento, dada a segregação entre os locais de trabalho e os espaços de residência da população que teve de continuar a garantir a sua presença física (empregadas de limpeza, vigilantes e agentes de segurança, trabalhadores do comércio essencial e da distribuição, funcionários ligados à higiene urbana, transportes públicos, manutenção de infraestruturas, ...). As assimetrias existentes no acesso e disponibilidade dos serviços de saúde ou ainda nas condições de habitação, também servem de potencial agravante da suscetibilidade existente na AML.

A vulnerabilidade, entendida como as características intrínsecas à comunidade que acaba por a fragilizar perante a epidemia, infelizmente, também é aqui exponenciada pela presença de múltiplos grupos de risco e pelo modo como eles se organizam (ou os organizam). Começamos a ter consciência da expressão do volume dos requerentes de asilo e da forma como vivem, assim como o das minorias étnicas, culturais e religiosas e ainda dos emigrantes. Também não nos passou ao lado o drama dos lares de idosos onde, curiosamente, só os legalizados é que parecem ter revelado problemas. No período pré-Covid19 as notícias eram, quase em exclusivo, sobre lares "clandestinos", isto é, a operar sem o devido licenciamento da segurança social. Agora, ninguém sabe quantos dos (talvez) 35 mil utentes deste tipo de lares (levantamento feito há uns anos pela Associação de Apoio Domiciliário, de Lares e Casas de Repouso de Idosos) poderão estar infetados, se têm plano de contingência ou como poderão ser atualmente as condições de vida no seu interior.

Portanto, dado assente: as áreas metropolitanas, pelo que ficou dito e implícito, não podem deixar de ser territórios-chave nas estratégias a adotar, muito em especial nesta fase de desconfinamento que agora começou.

Assumindo este pressuposto, talvez seja de olhar então para o que tem sido feito a esta escala. Visto a partir de cima, a DGS tem as competências para determinar as medidas necessárias à proteção da saúde pública embora com a óbvia obrigação de articulação com as estruturas locais - delegado de saúde pública, proteção civil municipal e forças de segurança. Foi ainda feito um esforço adicional de coordenação regional da execução da declaração do estado de emergência com a nomeação de um secretário de estado por NUTII, deixando no ar o indelével perfume dos antigos cargos de Governadores-Civis.

Demonstrada a preocupação que existiu na agilização dos canais de ligação entre os diferentes níveis de administração interessa perceber também como funcionou a concertação entre a CCDR LVT e a AML bem como entre os 18 municípios que a constituem. No sítio eletrónico da CCDR apenas existe a indicação de que os serviços se encontram encerrados ao atendimento presencial e a disponibilização da notícia de que "existirá" um webinar promovido pela DGS para autarquias e freguesias no dia 20 de abril. Dessa sessão não ficou rasto de qualquer documento disponível para acesso posterior nem evidências de qualquer ligação entre a CCDR LVT e outras entidades ou mesmo de qualquer outro papel relevante neste contexto de emergência nacional. A explicação está, como se percebe, no papel central - de coordenação e gestão - que o Ministério da Saúde e a DGS têm tido nesta crise sanitária.

Da AML, as notícias que publicou dão conta de uma reação direta no terreno com a distribuição de material médico e de proteção; com a definição de regras a cumprir nos transportes coletivos; e, com a realização de testes aos cuidadores de idosos nos lares de idosos. Mas também se percebe a existência de uma reação ligada aos esforços de cooperação entre municípios com a criação de uma Plataforma de Gestão Integrada onde todos podem partilhar as disponibilidades e excedentes que poderão vir a ser aproveitados.

Estes sinais, embora ténues, revelam contribuições muito interessantes para a construção gradual de uma relação de solidariedade e colaboração interinstitucional na AML. Todavia, poder-se-ia esperar que, à boleia do que se conseguiu no sistema de transportes, se pudesse ter ido mais longe mesmo neste domínio. Uma simples leitura dos lamentos das inúmeras associações de utentes de transportes públicos existentes sobre o serviço prestado neste período pelos operadores mostra bem como haveria ainda algum trabalho adicional a fazer para minimizar os problemas sentidos.

Finalmente, entrou em vigor o estado de calamidade e o início gradual do desconfinamento. Algumas regras são já conhecidas, pressentindo-se agora um enorme trabalho a fazer no seu acompanhamento e verificação, bem como na monitorização e controlo dos sinais que anunciem uma segunda onda epidémica ou ainda na mitigação dos impactos sociais e económicos da pandemia que já são mais que evidentes.

As imagens do estado que resgata empresas e rendimentos e dos municípios heróis (em muitos casos verdadeiras) funcionam bem mediaticamente, mas já se percebeu que no campo da eficácia, eficiência e equidade haverá que fazer esforços adicionais na compatibilização de critérios, concertação de ações e de decisões para que a fragmentação institucional não se transforme numa penosa insularidade de cada um.

Por isso, concertação, colaboração e cooperação deverão ser palavras-chave para a AML entendidas quer no âmbito vertical, entre administração central e local, quer horizontal, entre municípios, e entre eles e a riqueza de uma sociedade civil mais que nunca disponível, interessada e motivada para participar na reconstrução de uma metrópole que se pretende mais justa, mais sustentável e mais resiliente, aproveitando a oportunidade que todas as crises de saúde pública sempre trouxeram às cidades e às metrópoles.

Surge desde logo como atrativa a ideia da dinamização do atual conselho consultivo metropolitano com 53 entidades de natureza pública, privada e associativa, poderia ser uma boa base de partida para a reflexão sobre um novo modelo metropolitano. Este ou outro universo de agentes e atores, organizados em painéis transversais e transdisciplinares, constituiriam plataformas de harmonização, consciencialização e articulação entre órgãos reguladores e desconcentrados do estado, municípios, organizações da sociedade civil e universidades, entre outras entidades, capazes de gerar conhecimento, propostas e capital social.

Não é difícil pensar em temas como a descarbonização, o direito à habitação e à cidade ou mesmo a digitalização da vida coletiva, entre muitos outros, para servirem de oportunidade à criação de uma mais sólida identidade metropolitana sem beliscar as legitimidades centrais e locais democraticamente exercidas, nem os modelos institucionais hoje vigentes para as áreas metropolitanas.

Pensar metropolitano nunca foi fácil, mas é ainda mais difícil no atual quadro extremado centralista-municipalista. Estimular uma reflexão metropolitana estruturada, aberta, partilhada e inclusiva, permitiria uma vantajosa transição em direção a um renovado modelo de governança, onde a democracia participativa corresponde "apenas" a um dos suportes de apoio à democracia representativa, que se acredita ainda ser o melhor garante da defesa do interesse coletivo.

Geógrafo. Professor do Instituto Superior Técnico

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