Marrocos e Israel
O recente anúncio do presidente Trump dos EUA de que Marrocos e Israel decidiram normalizar as suas relações, não apareceu de surpresa. Era algo esperado há muito, mas cautelosamente adiado pelos governantes marroquinos, para evitar qualquer reação contrária.
A mais recente "normalização das relações" não é a primeira. Os dois países já tiveram relações diplomáticas entre 1995 e 2000, com gabinetes de ligação em ambos os lados. Além disso, o turista israelita costumava viajar para Marrocos independentemente do estado das relações.
Os laços entre eles são definidos pela grande comunidade judaica que vivia em Marrocos após a expulsão de Espanha no final do século XV. Após a criação do Estado de Israel em 1948, começou a imigração de judeus vindos de Marrocos e calcula-se que mais de um milhão de israelitas têm hoje ligações com Marrocos (o que os torna o segundo maior grupo depois dos judeus russos). Mas, nem toda a gente saiu. Hoje, cerca de 2500 judeus vivem em Marrocos e alguns deles ocupam cargos muito importantes.
Assim, os laços nunca se romperam ao longo do tempo e é nisso que o caso de Marrocos e Israel se diferencia dos outros três estados árabes - a forma de normalizar as suas relações com o Estado judeu - Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Sudão. Era óbvio que os estrategas de Marrocos apenas fizeram uma escolha cuidadosa do momento, para não colocar em perigo os governantes daquele país pela resistência local.
E eis que chega o bónus: o reconhecimento pelos EUA da soberania de Marrocos sobre toda a região do Saara Ocidental. É, definitivamente, uma grande conquista para o rei Mohammad VI, que será vista de forma muito positiva dentro do país e criará o equilíbrio necessário com a potencial insatisfação com os laços com Israel.
O Saara Ocidental foi território espanhol até 1975, quando os espanhóis partiram deixando um conflito não resolvido com a população local. No território do Saara Ocidental vivem mais de 500 mil membros da população saráui, liderada pela Frente Polisário, que declarou a sua independência. Os marroquinos invadiram o território e atualmente detêm a maior parte dele. A Frente Polisário controla uma porção menor do território e tem um forte apoio da Argélia nas suas reivindicações. A maioria dos países, juntamente com a ONU, não reconheceu a soberania marroquina ou a independência da Polisário e pressionou pela solução negociada. A Polisário e a Argélia querem um referendo da população saráui organizado pela ONU, e Rabat não oferece mais do que a autonomia do Saara Ocidental dentro de Marrocos.
O resultado do novo desenvolvimento é o seguinte: Israel conseguiu outro estado árabe na lista da solidariedade quebrada com os palestinos o que, realisticamente, mina seriamente a alegação de que somente a paz com eles pode levar à normalização com o mundo árabe. O primeiro-ministro Netanyahu será elogiado por um milhão de israelitas originários de Marrocos ou seus descendentes, o que pode ser muito útil no caso de uma nova eleição. Marrocos obteve o reconhecimento dos EUA da sua reivindicação de soberania em todo o território do Saara Ocidental. As relações abertas com Israel deixaram de sertão negativas, tendo em vista o benefício do apoio americano. Além disso, as suas relações com Israel, especialmente na área da segurança, são cada vez mais importantes. Claro, o reconhecimento da sua soberania sobre o Saara Ocidental não é provavelmente a única coisa que os americanos prometeram. Decididamente, é preciso adicionar algum equipamento militar.
A questão da política dos EUA no Médio Oriente é ainda mais interessante. O presidente Trump estava fortemente convencido de que o seu genro, Jared Kushner, era a pessoa que resolveria a crise do Médio Oriente. Ele criou um plano para isso, mas falhou ao não levar em consideração as necessidades de todas as partes. Isso simplesmente não poderia funcionar. Por isso, recorreu aos estados árabes não muito próximos geograficamente dos territórios palestinos e ofereceu recompensas a qualquer um deles, caso normalizassem as relações com Israel. Claro, os árabes são bons negociantes e limitam-se a mandar as "faturas" para a Casa Branca. Os pedidos foram aceites, com o objetivo de fortalecer a imagem do presidente Trump como o maior pacificador do mundo, a qualquer preço.
Como o tempo da atual administração dos Estados Unidos se está a esgotar, há possibilidades muito limitadas para qualquer outro país fazer o mesmo. A melhor ainda está de fora (Arábia Saudita), mostrando fortes diferenças entre a elite governante em relação a Israel. É uma questão em aberto se o presidente Trump terá tempo suficiente para mudar isso.
O presidente eleito, Joe Biden, vai tomar posse no dia 20 de janeiro. Ele terá um equilíbrio de poderes muito diferente no Médio Oriente e no Norte da África. No caso do Irão, ele provavelmente tem um plano sobre o que fazer. Com a Síria e o Iraque, não há muito a fazer. De muitas maneiras, as coisas saíram do controlo e terão a sua própria dinâmica. Os palestinianos receberão novamente o apoio financeiro dos EUA, mas numa situação mais difícil, que terão de aceitar. Ninguém sabe como lidar com a guerra no Iémen; e a nova situação no Saara Ocidental estará ligada à futura decisão da Frente Polisário (e da Argélia) sobre como reagir. A violência é uma opção e não existem muitas outras.
Toda a região, da fronteira da Turquia às costas do Atlântico, está a mostrar que as coisas podem sempre tornar-se mais complicadas do que antes. A única constante - e que não vai desaparecer - é que o futuro palestiniano não está resolvido.
Antigo embaixador da Sérvia em Portugal e investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE