Morte a pedido, desmistificações místicas
O deputado José Manuel Pureza publicou um artigo no DN em que, segundo o próprio, tenta desmistificar alguns dos argumentos daqueles que rejeitam a morte a pedido. O grande problema do artigo é que, embora peça rigor no debate, acaba por aumentar a mistificação em redor do tema.
O primeiro grande ponto do deputado é o da rampa deslizante, que seria agitado como um papão com ameaças de eutanásias por motivos fúteis ou involuntárias. Ora, não é nada disso que os opositores da eutanásia afirmam. Aquilo que argumentamos é que nos países onde existe legislação que permite a morte a pedido o âmbito da aplicação da lei tem vindo a aumentar desde a sua entrada em vigor. Por exemplo, ao princípio a eutanásia só era permitida em casos de sofrimento físico, neste momento já é permitida em casos de sofrimento mental. Nós temos os factos, o senhor deputado tem a crença de que em Portugal será diferente. Fica assim a dúvida de quem está a mistificar: quem apresenta os factos ou quem apresenta a sua crença?
A segunda mistificação seria a de que são os médicos que decidem. Infelizmente, é isso que resulta dos projectos de lei até agora apresentados. Aliás, o projecto de lei do PAN afirma-o claramente no seu 9.º artigo. É evidente que o pedido é sempre do doente, é evidente que o doente tem sempre o poder de retirar o pedido, mas quem decide se o pedido é atendido são os médicos. Como resulta claro dos projectos apresentados, a eutanásia só se aplica nos casos em que o legislador acha que esta pode ser aplicada. Quem decide se o doente que pede a eutanásia se encontra dentro do previsto na lei são os médicos. Logo, quem decide se o pedido do doente pode ser executado são os médicos. Não se trata de mistificação, mas de lógica.
A terceira mistificação apontada é a de que a morte a pedido viola o preceito da inviolabilidade da vida humana. Aqui José Manuel Pureza faz uma tremenda jogada de cintura para justificar como é que matar alguém não é contra o princípio de que a vida humana é inviolável. Segundo o próprio (num argumento que tem sido aliás repetidamente usado pelos defensores da eutanásia), o Estado tem de defender a vida, mas não a pode impor.
Esta afirmação é verdade, o Estado não pode impor a vida. Por isso é necessário o consentimento informado, por isso é proibida a distanásia e o encarniçamento terapêutico. Nada disto está em discussão.
O que se está a debater é se é lícito tirar a vida a alguém porque este o pede. Não a imposição da vida, mas a eliminação da vida. A violação da vida. Tal como está proibido no artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa.
Falar em imposição da vida quando discutimos a legalização da morte a pedido, mais do que mistificar é iludir.
Por fim, afirma o deputado bloquista que a última grande mistificação é de que a lei que defende cria uma hierarquização das mortes. Segundo o próprio, isto não é verdade porque assim os doentes que querem ser mortos estão na mesma circunstância que os doentes que não o querem ser! Ou seja, compara duas coisas incomparáveis: o ritmo natural da vida com uma acção premeditada para matar uma pessoa.
É evidente que esta lei cria uma hierarquização das mortes: de um ponto de vista geral, porque há vidas que são invioláveis, até contra a vontade dos próprios, e vidas que podem ser eliminadas. Em específico, porque uma pessoa que mate outrem a pedido deste não comete um crime se a acção for praticada dentro dos ditames da lei proposta pelo Bloco mas se o fizer fora desses ditames, ainda que movido apenas pela vontade de quem pede, acaba preso.
Afirmar que uma lei que mantém a pena de prisão para o homicídio a pedido da vítima em todas as circunstâncias excepto naquelas que a lei prevê não hierarquiza as mortes é um salto de lógica incompreensível.
O debate sobre a morte a pedido deve ser sério e sem mistificações. Neste ponto penso que todos podemos concordar com José Manuel Pureza. Infelizmente, o deputado bloquista em vez do rigor recorreu à crença. Em vez da razão ao sentimento. Resumindo: mistificou!
Subscritor da petição Toda a Vida tem Dignidade