Imortalidade da relação médico-doente
O futuro é hoje e o mundo digital renova-se diariamente para benefício de todos. Muito se tem falado do progresso digital e consequentes ganhos em saúde. A valorização das rotinas e a otimização de resultados está cada vez mais depende do virtuosismo tecnológico. A computação cognitiva já é uma realidade. E a capacidade de colocar os computadores e a informação global ao serviço das pessoas e da medicina, tornando-se insubstituíveis por permitirem "pensar" mais longe e mais rápido, traz, naturalmente, inequívocas vantagens. Mas e o real relacionamento entre as pessoas? Como se preserva o essencial da relação entre médicos e doentes?
Numa capa da revista Time de 2011, já Lev Grossman antecipava que 2045 seria o ano em que o homem atingiria a imortalidade. Recordava então a história de Raymond Kurzweil que, em 1965, apresentara no programa de televisão norte-americano I"ve Got a Secret uma belíssima peça de piano. Detalhe fulcral: ninguém adivinhou que a música, aparentemente interpretada ao piano por um ser humano, era reproduzida, afinal, por um computador. Um computador que o próprio adolescente de 17 anos criara.
O futuro é hoje mas já vem a galope desde ontem. O mundo digital há muito que se tornou "imortal". E vai conquistando espaço pelo seu carácter de indispensabilidade e tremendo input que traz para as ciências médicas e melhoria da vida dos doentes.
A evolução capacitou a memória digital de maiores recursos - a preços mais competitivos (hoje 1 MB de memória custa muito menos do que na década de 1980) -, encurtou processos, aumentou a sua qualidade e velocidade. Na área da oncologia, por exemplo, existem até ferramentas tecnológicas capazes de observar o genoma humano e sugerir as terapêuticas mais indicadas de acordo com as especificidades de cada organismo, em conformidade com a ficha clínica individual de cada doente. Também já há programas informáticos que leem texto livre, desestruturado ou até emoções transformando--os em informação agregada, inteligível. A própria capacidade do cérebro humano tem vindo a desenvolver-se e os jovens têm hoje, eles próprios, uma memória e desenvolvimento neurológico mais ajustado ao mundo atual.
A tecnologia é indispensável, sim. Mas não substitui o homem. São incontornáveis as conquistas que potenciam a capacidade de cura de um doente e a sua qualidade de vida. Mas há que adaptar essa evolução às boas práticas e associá-la à humanização da medicina, na otimização da saúde dos nossos doentes. Sempre!
Há também o revés da medalha. No dia-a-dia profissional, o médico jamais pode deixar que o computador, e todos os procedimentos informáticos inerentes, fragilize a sua relação com o doente. É preciso tempo para olhar o doente que está à nossa frente, conhecê-lo, falar com ele e entender as várias dimensões da saúde e da doença, para servi-lo com o máximo de qualidade e humanismo.
A regulação das boas práticas médicas - que começam na relação médico-doente - é uma função da Ordem dos Médicos. A "relação médico-doente - património do ser humano" é precisamente o tema do XX Congresso Nacional de Medicina que se avizinha em Coimbra, nos próximos dias 18 e 19. E é missão de todos os médicos defender a humanização desta relação. Por isso também a Ordem dos Médicos se associou ao projeto de candidatura da relação médico-doente a Património da Humanidade da UNESCO. O propósito desta candidatura, além do reconhecimento do bem cultural e social desta relação, passa por defender a relação médico-doente das ameaças a que está sujeita, resultantes de "pressões administrativas, tecnológicas, económicas e políticas, entre outras". Damos todo o nosso apoio para que venha a ser uma proposta vencedora.
Futurologia à parte no que respeita à imortalidade de pessoas ou de máquinas, há o essencial que deve ser infinitamente preservado: a humanização da medicina. Para que todos tenhamos uma vida melhor, mais longa... ainda que mortal.
Bastonário da Ordem dos Médicos