Houve uma falha grave na gestão da pandemia?

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Que o estado de emergência ou a gravidade da crise sanitária e económica possam cercear a liberdade de expressão, o direito à crítica e o normal escrutínio democrático, é coisa que jamais se poderá aceitar. É certo que o súbito - ou aparentemente súbito - agravamento da situação epidemiológica exige a coesão, o empenho e a incondicional adesão de todos às medidas mais restritivas adotadas ou a adotar pelo Governo. Mas não exige, bem pelo contrário, a ausência de sentido crítico sobre elas e sobre o processo que a elas terá conduzido ou, mais rigorosamente, à necessidade ou inevitabilidade da sua adoção.

O estado das coisas é perturbadoramente sério e é de temer uma rutura do SNS, que segundo as notícias veiculadas está no limiar da saturação. Tendo em conta que o número diário de novos casos já atingiu valores em torno dos 10.000, mesmo que apenas 5% destes doentes careçam de internamento (e as estatísticas parecem apontar para mais do que isso), teremos milhares de doentes a chegar aos hospitais em breve. Não sou "epidemiologista de bancada", nem pretendo sê-lo, mas não precisamos de tapar o sol com uma peneira.

Sabia-se que o alívio das medidas durante o Natal traria um aumento de casos, mas nenhum comum cidadão contava com um agravamento desta grandeza. E se o Governo contasse com ele, não poderia ter permitido esse alívio. Por isso, o País tem o direito de saber e perceber o que correu mal, agora que cada um de nós tem de preparar-se para enfrentar esta realidade. Por outras palavras, temos direito a saber se houve um erro na avaliação do risco e porquê, se um agravamento desta dimensão era uma hipótese considerada ou plausível - o que seria de uma gravidade extrema - ou se falharam, no terreno, os meios de contenção, monitorização e acompanhamento.

A ideia segundo a qual o balanço das consequências do Natal sempre dependeria de uma reunião com especialistas no Infarmed é dificilmente compreensível. Como é dificilmente compreensível que pudessem subsistir, no final da semana passada, dúvidas sobre a interpretação dos números e a eventual ocorrência de uma acumulação de notificações tardias. O Ministério da Saúde não dispõe ou não se dotou da "expertise" necessária para fazer, com segurança, a sua própria avaliação e interpretação dos números, dependendo, em absoluto, das reuniões no Infarmed?

Percorrendo a imprensa recente, deparamo-nos com a reiterada afirmação, por parte de médicos de saúde pública ou medicina geral e familiar, de que faltaram e faltam recursos humanos suficientes para fazer a monitorização da evolução da pandemia. Do mesmo passo que reputados epidemiologistas e a Ordem dos Médicos não têm dúvidas em atribuir o aumento de casos ao afrouxamento das medidas de contenção durante o Natal.

Por outro lado, as notícias veiculadas pela imprensa também dão conta de que, mesmo sem contabilizar os últimos dias da semana passada, Portugal teve o 5.º maior agravamento da situação sanitária a nível europeu durante o Natal, que a nova estirpe do SARS-CoV-2 há pelo menos um mês circula em Portugal e que 5.000 casos não detetados nas últimas semanas estiveram na origem deste aumento exponencial. São indícios de falta de prontidão, de (in)disponibilidade ou deficiente gestão de meios e de algum défice de atualização da informação científica que merecem reflexão e esclarecimentos.

Seja como for, é manifesto que não há agora margem para quaisquer erros ou falhas de gestão da crise sanitária e que cada um de nós também tem de cumprir escrupulosamente todas as regras. O combate ao vírus, por si só, já é difícil, árduo e penoso "quanto baste". Resta-nos "cerrar os dentes" e aguentar até que as novas medidas surtam efeito e a tempestade abrande. Infelizmente, não sem um avultado número de vítimas.

Advogado e Doutorando da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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