História repete-se
As desigualdades políticas, sociais e territoriais têm um efeito devastador sobre o funcionamento das democracias porque cegam os que detêm o poder. O que se passa atualmente na Catalunha é, entre muitas e complexas razões, uma questão de desigualdade.
Seria longo de abordar as razões históricas, sociológicas e linguísticas (para só enumerar apenas três) que envolvem a Catalunha, velho condado medieval geograficamente encravado, a norte, nos Pirenéus Orientais e que se estende, para sul, ao Mediterrâneo. Cultural e linguisticamente, compreende a Catalunha propriamente dita, as Ilhas Baleares e a região Valenciana, Andorra, franjas do Aragão, a cidade de Alghero (na Sardenha), o Rosilhão (hoje pertencente aos Pirenéus franceses) e o pequeno território do Carche (situado na região de Múrcia). Todos estes microestados, cidades, enclaves, etc., são conhecidos pelo nome de Países Catalães. Isto, evidentemente, sem referir que toda a região da Occitânia, ou seja, praticamente todo o Sul de França, tem forte influência da língua occitânica (língua d"Oc), ou seja, do provençal que se fala, com mais acento, menos acento, em toda a Catalunha. Estamos perante uma região da Europa de tamanho considerável, unida por uma mesma língua.
Além de um idioma comum, estamos também perante uma região de grande riqueza económica, o que fez sempre com que a questão do dízimo nunca fosse pacífica. Bem pelo contrário! No caso concreto da Catalunha, essa questão é bem antiga, bastando para o efeito recordar o "Corpus de Sangre", ou "Guerra dels Segadores", um conflito que se estendeu de 1640 a 1652, e que começou com uma revolta de camponeses contra os impostos exigidos pelo vice-rei da Catalunha, Dalmau de Queralt, conde de Santa Coloma, destinados aos cofres de Madrid. Essa revolta teve como consequências internas o nascimento do nacionalismo catalão e, como consequências externas, uma dupla guerra que a Espanha teve de travar com Portugal (1640-1668) e com a França (1641-1659), em ambos os casos com significativas perdas territoriais, isto é, perdeu Portugal e o Rossilhão. Refira-se de raspão que a "Guerra dels Segadores" ficou de tal maneira marcada na memória dos catalães, que é hoje o hino da Catalunha sob a designação de Cançó dels Segadors.
Isto dito, facilmente se depreende por que razões a Catalunha de hoje volta a estar mergulhada em velhos problemas que uma língua própria ajuda a confederar contra a Espanha.
E, em face das mesmas desigualdades, os políticos contemporâneos, que se consideram verdadeiros democratas, continuam a espezinhar a participação dos cidadãos. Como democratas à moda do direito natural apoiam-se na racionalidade vigente, no pressuposto do que é justo e imutável, e ameaçam com as leis. Já não passam à espada os segadors (ceifeiros) de ontem, como fez Filipe IV de Espanha e III de Portugal, mas sovam os revoltosos com a matraca da Constituição de 1978, como se ela fosse um livro sagrado, declarando desse modo a proibição à liberdade de escolha de uma solução política, jurídica, social e afetiva diferente.
Como se existisse uma norma de direito divino a impedir a existência de um novo estado independente, na Península Ibérica. Em nome de uma nação espanhola unida por um sistema constitucional em que poucos se reveem, baseado numa monarquia hereditária e num governo que se esquece daqueles que estão longe de Madrid e que, desde 2012, se nega a negociar um pacto fiscal com a Catalunha.
Os efeitos políticos da desigualdade económica aumentaram o interesse e a discussão por um sistema adequado para a Espanha. As autonomias querem evoluir para o federalismo, e isso é inegável. Fazer a reforma constitucional parece-me a via política mais adequada para evitar o confronto nas ruas e um eventual regresso aos tempos do franquismo, regime durante o qual a repressão e a agressão se impunham aos desejos das autonomias.
Mariano Rajoy parece não estar a ver a floresta mas, sim e unicamente, a árvore. Apoia-se na Constituição de 1978 e ameaça com o famoso e perigoso artigo 155.º , artigo esse que permite ao governo intervir nas comunidades autónomas e assumir todas as suas competências, retirando assim todo o poder a quem foi democraticamente eleito. Isso significará que o Tribunal Constitucional, cumprindo estritamente as ordens de Madrid, suspenda imediatamente todas as garantias constitucionais nas regiões autónomas. E como Estado de direito com legitimidade, ordenar-se-á então às forças policiais que prendam os políticos delinquentes que desejam a independência, e que foram eleitos pela mesma constituição que agora os reprime, esperando que os juízes que recusaram ao governo da Catalunha o acesso ao TEMIS 2 - uma base de dados equivalente aos nosso CITIUS, e que permite conhecer o estado dos processos judiciais em curso - os julguem e condenem.
O direito à resistência e à desobediência civil através de cujo exercício se pretende demonstrar a injustiça da lei ou da decisão governamental faz parte dos direitos universais do homem, direitos esses que se sobrepõem a todo e qualquer ato disfarçado de lei parlamentar ou constitucional.
A existirem práticas repressivas de ataque e perseguição a um grupo ou grupos por motivos políticos, nacionais ou culturais, estar-se-á perante "Crimes contra a Humanidade" como prevê o artigo 7.º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
Todos devemos saber (e apreender) que as revoltas não são de hoje, nem terminaram no século passado. A Catalunha é disso um exemplo lapidar. As consequências, como se viu mais acima, foram devastadoras para a Espanha, que se viu para sempre a braços com um arreigado nacionalismo, perdeu Portugal (por outras palavras, metade do mundo consagrada pelo Tratado de Tordesilhas), perdeu o estratégico Rossilhão pirenaico, teve de assinar desvantajosos tratados de paz com a França ditados pelo matreiro Mazarino, os quais, como se já não fossem poucas as desgraças, acabariam ainda por ditar a queda dos Áustrias pertencentes à Casa de Habsburgo e a consequente ascensão da muito francesa e então inamistosa Casa de Bourbon, à qual pertence o atual rei de Espanha. Eis algo em que Moncloa e o Palácio do Oriente deviam meditar com toda a concentração e prudência, porque, em termos de revolta, já tudo se sabe e tudo foi escrito: basta unicamente os povos descerem à rua e a história repete-se...
Sócio partner da Dantas Rodrigues & Associados